Ele se isolava
e era detestado. Na vila próxima de onde morava sentia-se um leproso andando
pela rua, todos o evitavam. Precisava sair dali, mas algo o prendia naquele
lugar horrível, entre as montanhas de um canto de Minas Gerais que parecia
perdido no tempo.
Sargento era
seu cachorro fiel. Dormia com ele, almoçavam a mesma comida, acompanhava-o nas
caçadas e no trabalho no pequeno sítio de dois alqueires que herdou do pai. O
casebre era mal faxinado. Sujeira e falta de higiene. O odiado, já lhe chamavam
assim, passava três a quatro dias sem se banhar. Caprichava um pouco quando
dava um pulo até a cidade. Havia um velho ônibus apenas duas vezes por semana.
Recebia sua aposentadoria e comprava poucas coisas. O necessário. Sua casa sem
energia elétrica, sua água de uma mina próxima da sua morada. Tudo simples,
tudo rústico.
Duas caixas de
madeira, daquelas antigas, onde guardava coisas. E serviam de assento também. Em
uma delas as escassas peças do seu vestuário, na outra os cadernos.
Nesses
cadernos ele escrevia suas histórias arrancadas da sua desacreditada
imaginação. Histórias que ninguém lia e ninguém era capaz de imaginar que ele
conseguia tal proeza. Tinha sido alfabetizado até o terceiro ano quando pegou
raiva da escola onde os outros garotos gostavam de tirar sarro da sua cara
emburrada.
Mas leu a
Bíblia inteira três vezes. Lia tudo que lhe chegava às mãos. Escrevia muito bem
apesar dos tropeços na gramática. Escrevia pela tarde.
fonte: da imagem: http://terrorcontos.blogspot.com/ |
Houve uma
noite, um bando de garotos drogados e a péssima ideia de colocar fogo na casa
dele. Ele dormia. Desmaiou sufocado pela fumaça e morreu carbonizado. Quase
tudo foi queimado, exceto a caixa de madeira com os cadernos. O cachorro ficou,
farejava tudo e parecia vigiar o pouco que sobrou. Dormia sobre a caixa.
Lucas, um
garoto perspicaz, na manhã seguinte passava pela estrada, ouvindo os latidos do
cachorro solitário, teve a curiosidade visitar os escombros do casebre. Pegou
para si os cadernos do velho homem queimado covardemente. O cão parecia não se
opor, mas o acompanhou até a sua casa.
Ele leu e entendeu que se tratava de histórias interessantes. Precisava
trazer à tona o talento do homem mais odiado da vila. Com ajuda da Secretaria
de Cultura, conseguiu publicar uma coletânea das histórias mais interessantes.
Foi às escolas, deu entrevista na rádio comunitária, postou em suas redes
sociais e atraiu um pequeno público para a noite de autógrafo.
No lançamento
do livro, Os Escritos Do Odiado, enquanto o rapaz, responsável a dar luz àquelas
histórias, falava do seu encanto da primeira vez que leu os manuscritos, Sargento,
com seu corpo magricelo, entrou no recinto.
Lucas
esbanjava orgulho e alguma timidez perante o público atencioso. Sargento foi se
acomodando ao lado do jovem. Enquanto o nome do velho era lembrado, o corpo do
cachorro foi ganhando massa muscular e mudando sua morfologia. Ninguém percebeu
o inicio da transformação, foi um garoto desatento às palavras do rapaz que
achou estranho o cão se transformando em um homem. Gritou, e então passaram a
perceber. Lucas olhou de lado e viu a transformação acontecendo. Ficou atônito,
boquiaberto. O animal tomou a forma do homem, autor das histórias contidas
naquele livro. Boa parte dos presentes, apavorados, diante do corpo do maltrapilho
já tido como morto, saiu correndo e se acotovelando na porta do salão. Os poucos
que ficaram viram o homem pegar o microfone da mão do rapaz que, assim que se
viu livre do objeto, caiu no chão, desmaiou. O homem odiado se apresentou e
pediu para que ninguém se assustasse. Ele não havia morrido no incêndio.
Esperava o momento certo para voltar a ser humano. Quem estava no corpo humano
carbonizado naquela noite criminosa era o do seu único e fiel amigo, o
cachorro, que trocou de alma com ele. Nem ele sabe como isso aconteceu.
Quando a
polícia chegou juntamente com os socorristas, o homem tomava água calmante. Não
havia porque prendê-lo. Viver como um cachorro não é crime.
Mas as mortes misteriosas
dos cinco delinquentes que atearam fogo naquele casebre, que não tinham sido
inocentados por serem filhos de famílias influentes, podiam até ser crime. Mas
elas tinham cara de justiça.
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