DA SÉRIE COSTA FERREIRA
POEMAS DA DECEPÇÃO
(OU DA FALTA DE OPÇÃO)
TODOS OS DIAS
Todos os dias
Eu penso no dia de amanhã
Esqueço-me do hoje
Esqueço-me do ontem
Tudo que eu quero
Não está perto de mim
Não está no início
Não está no fim
Tudo que eu quero
Passam-se dias e espero
Passam-se meses e não desespero
Todo dia eu tento manter a calma
A verdade não se parece com nada
A verdade não veda
E nada impede que o tempo escape
Entre os meus dedos
?Então qual a função da verdade
?Então qual a função da vida
Todo caminho faz círculos
!Desgastando músculos
A VIDA
Era um pedaço de vida
Espalhado por todo o chão
?De onde caiu
?Do céu, do inferno ou do avião
Ninguém soube dizer
Ninguém nunca vai saber
Estava lá um pedaço de vida
Provando que há vítimas
A polícia nada tem a dizer
Nem mesmo o sensacionalismo da TV
Eu vou dizer que o sopro se
espatifa
Quando se rifa a vida
Eu vou dizer que a vida
É muito além de comer e beber
É muito além de amanhecer e
anoitecer
É muito além de ser livre em jaulas
A vida é apenas vida
Mesmo espatifada no chão
NOSSO FEL
Qualquer dia desses a gente desce o
sarrafo
Em quem sempre nos atormenta
Qualquer dia desse a gente detona a cidade
Que não mais nos aguenta
Qualquer dia desses a gente zarpa
fora
De todo aforismo sem poesia
Qualquer dia desses a gente dá na
veia
Deixando jorrar o sangue podre
dessa cidade
No chafariz da praça central
Qualquer dia desses a gente
azucrina
Toda colônia, toda colina
Qualquer dia desses a gente declara
O dia da derrama
E esparrama nosso fel pelas ruelas
da cidade
Qualquer dia desses
Por que hoje
Estamos ocupados demais
Curando nossas feridas
RESSURGIR
Eu não tenho pedras nas mãos
Para acertar suas vidraças
Eu não tenho uma funda nas mãos
Para afundar sua testa
Mas me aguarde em dias de revolta
Mas me aguarde que eu um dia volto
Para desforrar toda maldade
Que essa cidade já praticou
Eu não tenho garras em minhas mãos
Para agarrar sua goela e apertar
Eu não tenho armas em minhas mãos
Para armar uma tocaia
Mas espere só para ver
O que vai haver quando eu ressurgir
Pareço agora no fundo do poço
Mas um dia vou emergir
E aí a cidade vai ver
O OURO
O ouro que tenho aqui no morro
Compra mais que tua mobília
O ouro que tenho aqui no bolso
Só não compra carinho de família
Mas desse ouro você não tem
Não é ouro que vem do tesouro
nacional
Mas desse ouro você sente falta
Não é ouro que se guarda em cofre
O ouro que tenho aqui comigo
Compensa todo o perigo que enfrento
O ouro que tenho aqui escondido
Compensa minhas horas de tensão
Mas esse ouro não é pro teu bico
Por mais que você seja rico
Mas esse ouro é inacessível
Para a tua insanidade
Esse ouro é meu, só meu
PEIXE NO AQUÁRIO
O peixe no aquário tem pouco espaço
O homem no espaço tem pouca água
A água no planeta está acabando
No planeta dos homens tudo está
acabando
Não há espaço para todos na cidade
Há um imenso vazio dentro de todos
Há mais de uma regra pro mesmo jogo
A ganância é o oxigênio que
alimenta esse fogo
Não há espaço entre os latifúndios
Para quem quer apenas o pão de cada
dia
Não há dia para a gente lutar
A luta é pelo sol de amanhã
Assim é a vida na cidade
capitalista
Assim é o capital que regula nossa
gula
Assim é a bula para quem quer fica
são
Assim é a solução para quem quer
dissolver o planeta
NEM TE CONTO
O cão que late a noite toda
Numa cidadezinha da América Latina
Assiste-se enlatado a noite toda
Assassinatos dublados na vida real
O gato que mia sobre o telhado
Buscando atalho para a comida
Faz à noite o que fazemos ao dia
Sempre temos medo da água fria
O general que pensa no golpe
Buscando beber o povo em um só gole
?O que gera uma noite na minha
geração
?O que gera o país com meu imposto
de renda
A gente passa a noite como se abre
um parêntese
Na vida que se conquista sem
mais-valia
Na vida que se paga a vista sem
desconto
Na vida que se desvia em cada
contorno
Ah! Nem te conto como se vive na
América Latina
A DUZENTOS METROS
A duzentos metros dos meus olhos
Eu vejo meu castelo se desmoronar
Eu vejo teus cabelos cair por chão
Eu vejo teus olhos se fecharem para
mim
A duzentos metros dos meus olhos
Uma linha de metrô se implode
Uma lei diz que tudo pode
Eu mando todo mundo se fuder
A duzentos metros do meu nariz
Um país fede naftalina e mofo
Nada se renova há duzentos anos
Nada se move a não ser a engrenagem
da opressão
A duzentos metros da minha boca
O alimento recebe barras de código
O código civil se rasga para limpar
a bunda
De um bando de juiz bundão
A duzentos metros das minhas mãos
A solução
ENGRENAGEM
Amanhã pode ser tarde demais
Para derrotar minha covardia
Amanhã pode ser tarde demais
Para tentar encontrar a paz
Eu caminho devagar entre vagões de
um trem sem direção
Eu caminho devagar entre espinhos
de rosas que sangram
Amanhã pode ser tarde demais
Para desmanchar todo mal entendido
Amanhã pode ser tarde demais
Para apagar o que está escrito em
linhas tortas
Eu caminho devagar entre dedos que
tentam esmagar-me
Eu caminho devagar entre predadores
que querem minha carne
Amanhã pode ser tarde demais
Para curar cada arranhão
Amanhã pode ser tarde demais
Para entender como o tempo passa
rápido
Eu caminho devagar entre vagas de
empregos
Eu caminho devagar em vales
tenebrosos
Eu caminho devagar para conhecer em
detalhes
Os dentes da engrenagem da morte