domingo, 7 de agosto de 2016

ETERNO BREVE MOMENTO


PARTE I
Sei lá o que me levou a envolver tanto com os trabalhos pastorais da Igreja. Primeiro foi coordenação do meu grupo de jovens. Depois, mais e mais compromissos.
Quando dei por mim, estava envolvido até a cabeça. Minha agenda sempre se encontra farta de reuniões. No fundo é gostoso. Você conhece pessoas e pessoas te conhecem.
Epa! Tenho que desligar a televisão. Daqui a pouco terei um encontro para planejar o mês que vem da Pastoral da Juventude. Acho que estamos precisando de mais pessoas envolvidas em nossos trabalhos pastorais. Quem sabe se uma das irmãs de caridade não seria o ideal. Outro dia eu ouvi o nosso pároco comentar qualquer coisa nesse sentido. Creio que não está muito longe de uma congregação feminina abrir uma casa aqui em Mutum.
Bem, sei que se eu ficar preso aqui, com esse meu “filosofar de guaxima”, acabarei chegando muito atrasado ao encontro.
Ah, uma calça jeans! Oh, como é difícil achar uma calça jeans para vestir quando se está com pressa. Minha mãe precisa colocar essas calças passadas no calceiro do guarda roupa. Lá sim é o lugar delas, e não aqui em cima da cama.
E por falar em cama, que rima com ama, de amar, hoje faz um ano que Magali terminou comigo. E já faz mais de um mês que não pinta nem uma paquera sequer. Essas pastorais costumam deixar a gente sem tempo para outras coisas como paquerar.
Acho que esta calça aqui está boa, vou vesti-la. Estou emagrecendo. É esse negócio da gente ficar almoçando e jantando sem hora certa e sempre às pressas.
A camisa que eu vou vestir. Deixa-me ver aqui. Aquela que Magali me deu de presente serve. Eu gosto dela e acho que de Magali também, ainda. Saudades de Magali. Será por que ela terminou comigo?
Bem da verdade, ela não chegou a terminar. Ela só pediu um tempo, e eu não dei. Aí ela não me procurou mais.
Sete horas. Nunca cheguei adiantado ou mesmo na hora. Não é hoje que isso vai acontecer. Agora são os sapatos. Onde estão? Ali. Descobri pelo cheiro leve de couro sujo. E lá vou eu para a reunião.
_Tchau, mãe. Eu tô indo.
_Tchau, vê se não volta tarde.
Eu já estou no portão.


PARTE II
Esse meu filosofar de guaxima ainda me levará a ser um gênio do tipo Espinoza, Schopenhauer, ou então a ser mais um habitante do sanatório. Certo, eu não sou mais que um cidadão comum, anônimo na multidão, banal, que fica preso dentro das obrigações cotidianas. Acordar, escovar os dentes, café da manhã e assim vai até dormir. Eu penso, fico tenso, eu tenho meu filosofar, guaximamente.
Meu último beijo, na boca, pra valer, foi em Magali. É outra Magali. Não aquela que me pediu um tempo. Eu não dei e tudo terminou. Esse beijo foi a mais de um mês.
A matriz está bem decorada. Se a burguesia não aceita a interpretação revolucionária da Bíblia e o espírito de compromisso social do cristianismo, ao menos contribui para enfeitar com seu eterno bom mau-gosto os nossos templos de Jerusalém.
Críticas à parte, o fato é que as irmãs de caridade vão ser recebidas pela nossa aburguesada comunidade paroquial.
Elas são três: Irmã Glória, supervisora da casa recém-fundada em Mutum, ar sério e autoritário; Irmã Consolação, a mais idosa, parece ser uma pessoa resignada; Irmã Cristiny, a mais nova, rosto cálido e postura cauta. Belo trio.
Fiquei sabendo no dia seguinte que as três irmãs de hábito branco vão atuar em várias frentes pastorais. Irmã Cristiny, a cauta, vai nos ajudar na Pastoral da Juventude.
“Bem-vinda, Irmã Cristiny!”. Um coro uníssono na sua apresentação ao grupo de jovem. “Essa me parece ser das nossas”, Filosofei intimamente com os meus... bem, com a estampa da minha camisa que lembra o DNJ (Dia Nacional da Juventude) do ano passado.
Sua apresentação somente confirmou o que nós esperávamos. Pelo menos eu. Não sei por que. Escondi meus tênis sujos jogando-os para debaixo da cadeira quando notei que Irmã Cristiny olhava para eles.
Ela ficou esperando que eu me apresentasse. Desmanchei o embaraço inicial e uma salada de palavras foi se desembuchando de dentro da minha boca. Ela me ouvia atentamente, parecia encantada com o que eu falei.
Neste dia conheci formalmente Irmã Cristiny. Ela é natural de Caputira, cidade relativamente perto. De lá conheço Áurea. Sua tez cálida traz dois verdes olhares e um sorriso puro. Angelical.
Voltei para minha casa com a fisionomia de Irmã Cristiny na cabeça. Linda, bela, cauta, menina-moça.
Todo dia reunião. Quase todo dia vejo irmã Cristiny.
Aonde vou achar uma calça jeans para vestir? Onde estão os meus sapatos? Já sei. Depois de uma farejada, localizei-os debaixo da penteadeira. Minha mãe deveria colocar as roupas no guarda roupa assim que ela terminasse de passar.
Ah! Também por que tanta pressa? Hoje não tem reunião. Até que enfim. Bem, eu poderia estar saindo para paquerar, mas estou sozinho. Eu poderia ficar em casa e ver televisão, mas já me desacostumei da TV. Nem se qual a programação de hoje. Vou sair por sair. Hoje estou calmo. Vou procurar uma calça, como sempre, sobre a cama, e como sempre, amarrotada.
Calmo estou, mas ouvi palmas suavemente agressivas. Ouvi alguém chamando:
_Fausto!
Fechei rapidamente o zíper e sai tropeçando na bainha da calça.
_Irmã Cristiny? Entre.
Ela entrou, sentou-se no sofá, começou a conversar comigo e eu com os olhos verdes dela.
Ameacei de ir colocar uma camisa. Ela me segurou pelo braço e disse que não tinha importância. Foi aí que notei que estávamos a sós. Eu e ela e minha casa.
Vieram em minha cabeça maus pensamentos. Deu em mim uma louca vontade de beijar seus lábios, abraçá-la apertadamente. Sentei bem próximo ao eu hábito branco, bem alvo. Senti o seu cheiro de mulher.
Irmã Cristiny parece ter notado nos meus olhos o desejo de tê-la. Tocou em assuntos variados com certa cautela. Mas algo me dizia que ela não era tão cauta assim.
Arranjou uma desculpa e levantou-se para ir embora.
_Cedo, Irmã.
_Não, Fausto. Não posso demorar. Só vim mesmo fazer uma visita de beija-flor. Arrematou ela harmoniosamente.
_Então, finge que sou uma flor e me beija. Quase falei, mas deu para segurar.
_Até mais, Fausto.
_Então até, Irmã.
Um beijo na bochecha, outro na outra bochecha, e no terceiro, num eterno breve momento, nossos lábios se tocaram.
Irmã Cristiny se foi. Fiquei com a dúvida. O beijo nos lábios, fruto da minha intenção, teria sido também da intenção dela?


PARTE III
Se não foi da intenção dela, certamente me perdoou. O nosso relacionamento continuou sendo o mesmo depois daquele nosso encontro lá em casa.
E se tiver sido da intenção dela? Bem, acho que venceu a vontade ou teria me beijado só por curiosidade.
Confesso que me apaixonei por Irmã Cristiny. Não consigo esquecê-la. Aqueles olhos verdes e aquele rosto cálido, eu os amo.
Faço questão de ir a todas as reuniões em que ela está.
_Poxa mãe. Onde está a calça jeans? Não posso chegar atrasado.
Falei um pouco irritado com minha mãe que não tem culpa da minha ansiedade para chegar cedo à reunião só para conversar amistosamente com Irmã Cristiny.
Às vezes me pergunto se ela não já percebeu essa minha paixão. Eu jamais lhe revelaria como algumas moças que ficam a fim de seminaristas e padres lhes revelam.
Interessante é que sempre se escrevem, nos romances, casos de moças, ou mulheres, com padres. Lembro-me agora de “O Crime do Padre Amaro” do Eça de Queirós, que eu pensava que fosse mulher por causa do Eça. Ainda que eu saiba não escreveram nenhum caso de um rapaz com uma freira. Se eu fosse escritor teria argumentos suficientes para colocar e colorir o meu romance. Argumentos que vão de engraçados a eróticos.
Daria um romance sim. Meu caso é trágico. Fiquei com a dúvida. O beijo dela foi intencional ou não?
Irmã Cristiny foi embora da paróquia de Mutum. Fui com o coração em prantos despedir-me dela. Tive vontade de pedir desculpas pelo beijo sem saber se ele foi roubado, imprevisto ou consentido. Abracei-a fortemente e lhe desejei boa sorte.
_Qualquer dia, Fausto, a gente se encontra. Não permitirei que seja este o último dia que nos veremos face a face.
Fiquei sem fôlego diante da profundidade das palavras dela. Creio que ela falou por falar.

PARTE IV
Irmã Margareth é totalmente adversa de Irmã Cristiny. Vermelha, bochechuda e tímida.
_Mãe, cadê as calças? Preciso arrumar a mochila.
_Vou pegar. Se não for eu você não arranjar nada. Cuidado com esse negócio de política. Já te falei para não ficar envolvido com isso.
Peguei o ônibus que passou atrasado por aqui. Não cochilei nem um minuto sequer. Fui filosofando guaximamente até a capital mineira. Belo Horizonte de mais de cem anos acolheu-me friamente com seu abraço de concreto. Meus companheiros de partido parecem mais ansiosos que eu.
Essa convenção estadual promete muito debate. Eu vou ficar com a atual direção. Entrando no mineirinho, ouvi:
_Fausto! Fausto!
Olhei para trás e quase não acreditei. Irmã Cristiny veio ao meu encontro e me abraçou.
­_Você por aqui, Irmã Cristiny?
_Irmã não mais, agora só Cristiny. Nem reparou que estou sem hábito.
Sinceramente eu não havia reparado mesmo tamanha emoção de revê-la.
Abraçamos novamente e este nosso eterno momento, desta vez, não se limitou na brevidade do tempo.
Certo dia depois que nos casamos, pergunto para Cristiny:
_Lembra-se daquele beijo quando você foi à minha casa pela primeira vez?
-Lembro.
_Foi incidente ou você quis?

_Você não sabe? Nem eu...

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