PARTE
I
Sei lá o que me levou a
envolver tanto com os trabalhos pastorais da Igreja. Primeiro foi coordenação
do meu grupo de jovens. Depois, mais e mais compromissos.
Quando dei por mim, estava
envolvido até a cabeça. Minha agenda sempre se encontra farta de reuniões. No
fundo é gostoso. Você conhece pessoas e pessoas te conhecem.
Epa! Tenho que desligar a
televisão. Daqui a pouco terei um encontro para planejar o mês que vem da
Pastoral da Juventude. Acho que estamos precisando de mais pessoas envolvidas
em nossos trabalhos pastorais. Quem sabe se uma das irmãs de caridade não seria
o ideal. Outro dia eu ouvi o nosso pároco comentar qualquer coisa nesse
sentido. Creio que não está muito longe de uma congregação feminina abrir uma
casa aqui em Mutum.
Bem, sei que se eu ficar
preso aqui, com esse meu “filosofar de guaxima”, acabarei chegando muito
atrasado ao encontro.
Ah, uma calça jeans! Oh,
como é difícil achar uma calça jeans para vestir quando se está com pressa.
Minha mãe precisa colocar essas calças passadas no calceiro do guarda roupa. Lá
sim é o lugar delas, e não aqui em cima da cama.
E por falar em cama, que
rima com ama, de amar, hoje faz um ano que Magali terminou comigo. E já faz
mais de um mês que não pinta nem uma paquera sequer. Essas pastorais costumam
deixar a gente sem tempo para outras coisas como paquerar.
Acho que esta calça aqui
está boa, vou vesti-la. Estou emagrecendo. É esse negócio da gente ficar
almoçando e jantando sem hora certa e sempre às pressas.
A camisa que eu vou
vestir. Deixa-me ver aqui. Aquela que Magali me deu de presente serve. Eu gosto
dela e acho que de Magali também, ainda. Saudades de Magali. Será por que ela
terminou comigo?
Bem da verdade, ela não
chegou a terminar. Ela só pediu um tempo, e eu não dei. Aí ela não me procurou
mais.
Sete horas. Nunca cheguei
adiantado ou mesmo na hora. Não é hoje que isso vai acontecer. Agora são os
sapatos. Onde estão? Ali. Descobri pelo cheiro leve de couro sujo. E lá vou eu
para a reunião.
_Tchau, mãe. Eu tô indo.
_Tchau, vê se não volta
tarde.
Eu já estou no portão.
PARTE
II
Esse meu filosofar de guaxima ainda me levará a ser um
gênio do tipo Espinoza, Schopenhauer, ou então a ser mais um habitante do sanatório.
Certo, eu não sou mais que um cidadão comum, anônimo na multidão, banal, que
fica preso dentro das obrigações cotidianas. Acordar, escovar os dentes, café
da manhã e assim vai até dormir. Eu penso, fico tenso, eu tenho meu filosofar,
guaximamente.
Meu último beijo, na boca, pra valer, foi em Magali. É outra
Magali. Não aquela que me pediu um tempo. Eu não dei e tudo terminou. Esse beijo
foi a mais de um mês.
A matriz está bem decorada. Se a burguesia não aceita a
interpretação revolucionária da Bíblia e o espírito de compromisso social do
cristianismo, ao menos contribui para enfeitar com seu eterno bom mau-gosto os
nossos templos de Jerusalém.
Críticas à parte, o fato é que as irmãs de caridade vão
ser recebidas pela nossa aburguesada comunidade paroquial.
Elas são três: Irmã Glória, supervisora da casa
recém-fundada em Mutum, ar sério e autoritário; Irmã Consolação, a mais idosa,
parece ser uma pessoa resignada; Irmã Cristiny, a mais nova, rosto cálido e
postura cauta. Belo trio.
Fiquei sabendo no dia seguinte que as três irmãs de
hábito branco vão atuar em várias frentes pastorais. Irmã Cristiny, a cauta, vai
nos ajudar na Pastoral da Juventude.
“Bem-vinda, Irmã Cristiny!”. Um coro uníssono na sua
apresentação ao grupo de jovem. “Essa me parece ser das nossas”, Filosofei
intimamente com os meus... bem, com a estampa da minha camisa que lembra o DNJ
(Dia Nacional da Juventude) do ano passado.
Sua apresentação somente confirmou o que nós esperávamos.
Pelo menos eu. Não sei por que. Escondi meus tênis sujos jogando-os para
debaixo da cadeira quando notei que Irmã Cristiny olhava para eles.
Ela ficou esperando que eu me apresentasse. Desmanchei o
embaraço inicial e uma salada de palavras foi se desembuchando de dentro da
minha boca. Ela me ouvia atentamente, parecia encantada com o que eu falei.
Neste dia conheci formalmente Irmã Cristiny. Ela é
natural de Caputira, cidade relativamente perto. De lá conheço Áurea. Sua tez
cálida traz dois verdes olhares e um sorriso puro. Angelical.
Voltei para minha casa com a fisionomia de Irmã
Cristiny na cabeça. Linda, bela, cauta, menina-moça.
Todo dia reunião. Quase todo dia vejo irmã Cristiny.
Aonde vou achar uma calça jeans para vestir? Onde estão
os meus sapatos? Já sei. Depois de uma farejada, localizei-os debaixo da
penteadeira. Minha mãe deveria colocar as roupas no guarda roupa assim que ela
terminasse de passar.
Ah! Também por que tanta pressa? Hoje não tem reunião. Até
que enfim. Bem, eu poderia estar saindo para paquerar, mas estou sozinho. Eu poderia
ficar em casa e ver televisão, mas já me desacostumei da TV. Nem se qual a
programação de hoje. Vou sair por sair. Hoje estou calmo. Vou procurar uma
calça, como sempre, sobre a cama, e como sempre, amarrotada.
Calmo estou, mas ouvi palmas suavemente agressivas. Ouvi
alguém chamando:
_Fausto!
Fechei rapidamente o zíper e sai tropeçando na bainha
da calça.
_Irmã Cristiny? Entre.
Ela entrou, sentou-se no sofá, começou a conversar
comigo e eu com os olhos verdes dela.
Ameacei de ir colocar uma camisa. Ela me segurou pelo
braço e disse que não tinha importância. Foi aí que notei que estávamos a sós. Eu
e ela e minha casa.
Vieram em minha cabeça maus pensamentos. Deu em mim uma
louca vontade de beijar seus lábios, abraçá-la apertadamente. Sentei bem
próximo ao eu hábito branco, bem alvo. Senti o seu cheiro de mulher.
Irmã Cristiny parece ter notado nos meus olhos o desejo
de tê-la. Tocou em assuntos variados com certa cautela. Mas algo me dizia que
ela não era tão cauta assim.
Arranjou uma desculpa e levantou-se para ir embora.
_Cedo, Irmã.
_Não, Fausto. Não posso demorar. Só vim mesmo fazer uma
visita de beija-flor. Arrematou ela harmoniosamente.
_Então, finge que sou uma flor e me beija. Quase falei,
mas deu para segurar.
_Até mais, Fausto.
_Então até, Irmã.
Um beijo na bochecha, outro na outra bochecha, e no terceiro,
num eterno breve momento, nossos lábios se tocaram.
Irmã Cristiny se foi. Fiquei com a dúvida. O beijo nos
lábios, fruto da minha intenção, teria sido também da intenção dela?
PARTE
III
Se não foi da intenção dela, certamente me perdoou. O nosso
relacionamento continuou sendo o mesmo depois daquele nosso encontro lá em
casa.
E se tiver sido da intenção dela? Bem, acho que venceu
a vontade ou teria me beijado só por curiosidade.
Confesso que me apaixonei por Irmã Cristiny. Não consigo
esquecê-la. Aqueles olhos verdes e aquele rosto cálido, eu os amo.
Faço questão de ir a todas as reuniões em que ela está.
_Poxa mãe. Onde está a calça jeans? Não posso chegar
atrasado.
Falei um pouco irritado com minha mãe que não tem culpa
da minha ansiedade para chegar cedo à reunião só para conversar amistosamente
com Irmã Cristiny.
Às vezes me pergunto se ela não já percebeu essa minha
paixão. Eu jamais lhe revelaria como algumas moças que ficam a fim de
seminaristas e padres lhes revelam.
Interessante é que sempre se escrevem, nos romances,
casos de moças, ou mulheres, com padres. Lembro-me agora de “O Crime do Padre
Amaro” do Eça de Queirós, que eu pensava que fosse mulher por causa do Eça. Ainda
que eu saiba não escreveram nenhum caso de um rapaz com uma freira. Se eu fosse
escritor teria argumentos suficientes para colocar e colorir o meu romance. Argumentos
que vão de engraçados a eróticos.
Daria um romance sim. Meu caso é trágico. Fiquei com a
dúvida. O beijo dela foi intencional ou não?
Irmã Cristiny foi embora da paróquia de Mutum. Fui com
o coração em prantos despedir-me dela. Tive vontade de pedir desculpas pelo
beijo sem saber se ele foi roubado, imprevisto ou consentido. Abracei-a
fortemente e lhe desejei boa sorte.
_Qualquer dia, Fausto, a gente se encontra. Não
permitirei que seja este o último dia que nos veremos face a face.
Fiquei sem fôlego diante da profundidade das palavras
dela. Creio que ela falou por falar.
PARTE
IV
Irmã Margareth é totalmente adversa de Irmã Cristiny.
Vermelha, bochechuda e tímida.
_Mãe, cadê as calças? Preciso arrumar a mochila.
_Vou pegar. Se não for eu você não arranjar nada. Cuidado
com esse negócio de política. Já te falei para não ficar envolvido com isso.
Peguei o ônibus que passou atrasado por aqui. Não cochilei
nem um minuto sequer. Fui filosofando guaximamente até a capital mineira. Belo Horizonte
de mais de cem anos acolheu-me friamente com seu abraço de concreto. Meus companheiros
de partido parecem mais ansiosos que eu.
Essa convenção estadual promete muito debate. Eu vou
ficar com a atual direção. Entrando no mineirinho, ouvi:
_Fausto! Fausto!
Olhei para trás e quase não acreditei. Irmã Cristiny
veio ao meu encontro e me abraçou.
_Você por aqui, Irmã Cristiny?
_Irmã não mais, agora só Cristiny. Nem reparou que
estou sem hábito.
Sinceramente eu não havia reparado mesmo tamanha emoção
de revê-la.
Abraçamos novamente e este nosso eterno momento, desta
vez, não se limitou na brevidade do tempo.
Certo dia depois que nos casamos, pergunto para Cristiny:
_Lembra-se daquele beijo quando você foi à minha casa
pela primeira vez?
-Lembro.
_Foi incidente ou você quis?
_Você não sabe? Nem eu...
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