As lágrimas... Tristes lágrimas que lhe faziam arder os olhos. Lindos olhos azuis como o céu. Agora como um céu nublado.
O seu rosto ainda doía só de se lembrar daquelas mãos
brutas e cruéis. Mãos que ora lhe acariciavam, ora lhe surravam. E ali jogada
na cama sobre as flores desbotadas de um surrado lençol, testemunhas das noites
de falta de amor, chorava com mais profundidade tentando fazer com que todo seu
ódio saísse pelos olhos.
Marli olhou para o espelho empoeirado da penteadeira e
descobriu seu rosto entre os frascos semivazios de perfumes.
Era a terceira vez nesta semana que levava uma surra do
seu cônjuge. Dias turbulentos pairavam sobre o destino desta pobre mulher. Engoliu
seco. Sentou na cama e se mirou novamente no espelho revendo o seu rosto. Passou
a mão nos olhos para secá-los. Esfregou ela as duas mãos no rosto para
descaracterizar as marcas dos dedos do seu carrasco e começou a pensa no
passado.
Passado. Agora o que tinha era uma casa de apenas dois
cômodos: quarto e cozinha e um banheiro adjacente. Na realidade o pequeno
banheiro é um espaço tão reduzido que mal dá para se virar dentro dele. Se a
gente entrar de frente tem que sair de costa. Se entrar de costas tem que sair
de frente.
Era preciso se levantar para preparar o almoço senão
corre o risco de levar outra surra quando Nivaldo chegar com seu estômago vazio
e aquele hálito de cana azeda. Pensou mais uma vez no hálito de Nivaldo quando
lhe forçava um beijo:
_Que nojo!
Levantou-se agora para valer. Procurou o par de
havaianas, pois o piso estava frio para os seus pés suados. Passou a mão pelo
vestido para desamarrotá-lo um pouco. Deu mais uma olhada no espelho
confirmando o que já desconfiava. O rosto marcado de roxo ainda estava. O roxo
da violência ainda persistia em morar na sua linda face arredondada.
Caminho cambaleando até a cozinha, o outro cômodo do
pequeno barraco, e começou a preparar o almoço. Depois de afogar o arroz e o
feijão, pôs se a descascar os quatro pepinos dentro de um escorredor de
macarrão amarelo. De vez em quando engolia seco lembrando-se da surra que
levou.
Enquanto descascava o penúltimo pepino, deu-lhe uma
louca vontade de trair o esposo como vingança. Queria desforrar. Não tinha
força física para retribuir com a mesma moeda. Mas, mesmo surrada, tinha beleza
suficiente para chamar a atenção de qualquer homem. Ontem mesmo foi cantada pelo
dono da mercearia quando foi comprar um quilo de sal. Não, com o dono da
mercearia não queria. Seria apenas uma a mais. Ele a possuiria como qualquer
uma. Conhecia a fama dele na cidade. Não valorizava as mulheres.
Foi até o armário e pegou a carteira de cigarros. Precisava
fumar. Estava nervosa e não via a hora de cortar o dedo picando os pepinos. Já bastava
a dor das pancadas. Acendeu o cigarro e recolocou a carteira sobre a caixa de
anticoncepcional. Pensou em Nivaldo que chegaria dai a pouco com sua carroça e
com seu azedume no bafo. Certamente entraria pela porta com muita pressa e
ficaria em silêncio.
Acertou. Tal como pensara há alguns minutos atrás. Ele entrou
pela porta e foi logo sentando na cadeira mais próxima que, como Marli, parecia
estar esperando por ele.
O silêncio reinou absoluto no recinto. Quebrado de vez
em quando pelo tilintar do alumínio das vasilhas e dos talheres.
Os olhos de Nivaldo acompanhavam de soslaio as carnudas
pernas de Marli sustentando o resto daquele corpo espancado pela brutalidade de
um homem sem domínio de si.
Nivaldo lembrava-se agora de uma reza que fizeram há
dias atrás em sua casa. Leram e falaram coisas bonitas a respeito da família. Como
colocar em prática o que foi falado naquela reza? Não, não devia ter surrado
Marli mais uma vez naquela semana.
_É que na hora a gente perde o controle. Não pensa.
Falou ele para si mesmo em silêncio.
Quando Nivaldo percebeu que o almoço estava pronto
tomou a iniciativa. Encheu seu prato, tinha bom apetite, e acomodou-se no mesmo
lugar onde apreciara por alguns minutos as pernas carnudas de sua esposa
enquanto se arrependia do ato feito.
Marli o olhava no rosto com ódio. As lágrimas não foram
suficientes para subtrair todo esse sentimento que faz azedar o estômago. Engolia
com certa dificuldade os grãos de arroz cozidos e molhados no caldo de feijão.
_O arroz ficou salgado. Pensou consigo e abafou a
própria voz quando, num segundo de distração, ia perguntando qual o julgamento
que ele fazia do tempero de seu arroz. Suspirou um ar nicotinado pelo último
cigarro que fumou. Não cederia, bateu o pé. Pegou mais duas tainhas de pepino
deixando sobrar mesma quantidade para o marido. Pegar as quatro poderia ser um
pretexto para iniciar um diálogo. Pegou apenas duas e repicou-as com a lateral
do garfo. Engoliu-as pouco a pouco como se estivesse concorrendo com Nivaldo quem
terminaria de almoçar por último.
Agora era ela que estava se lembrando da novena da
Campanha da Fraternidade em Família. Foi dona Alzira, boa mulher, que a
procurou. Acompanhou a novena todos os dias. Quis continuar a participar do
Grupo de Reflexão. Foi duas vezes e depois desanimou. Nivaldo não a estimulou. Participou
da novena apenas no dia em que rezaram na sua casa. Outras vizinhas, por
diversas vezes, a chamava para participar de outras igrejas. Mas ela achava que
se voltasse a participar tinha que ser na católica. Tem muito tempo que ela não
vai à igreja. Tem missa todos os domingos pela manhã em seu bairro. A última
vez que foi teve a impressão que todos ali a olhavam. Até mesmo o jovem padre
que certamente não a conhecia ficou olhando para ela durante a missa. Tinha certeza
que a maioria das pessoas na igreja sabia das surras que levava do marido. Sentiu-se
envergonhada e inferior às outras mulheres.
Nivaldo seguia almoçando e a olhando. Ela agora tenta
fingir que não o percebe e fingiu muito bem. Talvez não fosse o ódio que lhe
azedava o estômago, não teria conseguido disfarçar. Passou o garfo no fundo do
prato para ajuntar os grãos de arroz que ainda estavam lá manchados de caldo de
feijão como seu rosto pelo caldo da brutalidade do machismo idiota. Arriscou a
olhar para Nivaldo que ao sentir a presença dos olhos dela abaixou a cabeça.
Nivaldo começou a pensar nos carretos que pegou para
fazer à tarde, levantou-se. Foi até ao pequeno banheiro, gargarejou morna na
boca e saiu do mesmo jeito que entrou deixando sua esposa sentada na cadeira
como permanecera todo tempo do almoço.
_Melhor não falar nada. Deixo para ele puxar o assunto.
A língua até coçou para falar lhe umas poucas e boas. Mas é ele que tem que
puxar assunto. Miserável.
Marli deixou-se ficar mais cinco minutos sentada. Levantou-se
já recolhendo os dois pratos esmaltados com cuidado para não descasca-los mais
ainda. Guardou as panelas dentro do forno simples do fogão branco e lavou as
conchas, os garfos e os pratos na pia próxima ao velho fogão onde acabou de
guardar as panelas.
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