sábado, 26 de dezembro de 2015

CONSELHO DE CLASSE

(da série: Dr. Ramos)

Já passa das duas horas da manhã, José Roberto Ramos, conhecido no meio policial como Dr. Ramos ainda estava acordado. O doutor ele faz questão, afinal, fez doutorado em criminalística na Universidade de Bolonha, Itália. Ele é do grupo que entende que o título de doutor é apenas para quem tem doutorado e não para qualquer profissional de curso superior como costumam se aplicar por aí. Essa é a birra dele com os advogados. Bem, com doutorado, o que ele faz em Mutum, uma cidade espremida entre a fronteira de Minas Gerais com Espírito Santo? Nem ele sabe, mas como detetive da Polícia Civil de Minas Gerais, prefere os casos de interior. Não que o interior seja tão calmo. Ao contrário, o argumento do Secretario de Segurança Publica na época em que designou para essa região foi o grande número de homicídios ocorridos nessas plagas. Sim, Dr. Ramos é responsável por uma grande região no leste de Minas Gerais.
Em sua televisão estava passava a sua série favorita, Castle. Ele grava todos os dias e todas as noites assiste ao menos uns três episódios.  E aí seu celular tocou.
Três rapazes entre vinte e dois e vinte e três anos foram encontrados mortos dentro de um Fiat Uno estacionado em uma estradinha secundária no córrego da Ponte Alta, não tão distante da cidade. Todos foram baleados impiedosamente. Pela posição dos corpos, o que estava no volante foi baleado primeiro. Depois o carona que parece que estava tentando sair do carro e depois o que estava no banco de trás. Cada um levou dois tiros.
A primeira coisa que Dr. Ramos fez foi avaliar e deduzir como tudo se deu. Todos tinham um tiro certeiro na cabeça e um tiro no peito. Mas por que um tiro na cabeça e um tiro no peito? Deduziu o detetive que primeiro o assassino, isto é, se for somente um, chegou e deu um tiro em cada um e depois já com o domínio da situação, resolveu dar um tiro, mais próximo na cabeça de cada um para certificar-se que o serviço estava feito.
Pediu os policiais para não andar muito em volta do carro, queria manter intactas as marcas dos pneus, tanto do Fiat uno como a marca do assassino. Havia marcas de moto também. Se for só uma moto, então deve ser de no máximo dois assassinos. Mas parece que a moto tinha parado. A possibilidade de ser somente um então não estava descartada.
Outra questão que se deve considerar é o cigarro de maconha ainda aceso na mão do motorista. Certamente estavam ali puxando um baseado básico.
O pessoal da autopsia já estava no local. Com eles haveria mais conclusões.
Dr. Ramos voltou para casa, deu aquela dormida peculiar de duas horas e precisamente às sete e meia da manhã já estava em seu posto de trabalho na delegacia.
A essa altura já tinha levantado o nome dos três rapazes assassinados. O motorista era Samuel Cordeiro, que de cordeiro tinha muito pouco. Era motorista do caminhão de entrega em uma loja de material de construção. Também era o dono do Fiat Uno ano 2008, documentação em dia. Solteiro, pai de uma filha com dois anos de idade.
O carona da direita, possivelmente o segundo a ser baleado, era Adauto Gomes, ajudante de pedreiro, ou seja, servente de pedreiro como chamam na região. Casado e pai de uma criança com três anos de idade. A questão era: O que um homem casado e trabalhando em um serviço tão cansativo estava fazendo em plena quinta-feira a noite naquele lugar? Satisfazendo o vício, lógico.
O defunto encontrado na parte de trás era Bruno Vieira, técnico em eletrônica, tinha feito um curso por correspondência depois que se formou no ensino médio há quatro anos na escola pública da cidade, e estava a mais ou menos um ano se mantendo do seu oficio autônomo, trabalhando na pequena garagem de sua casa.
O questionamento próximo de Dr. Ramos a si mesmo foi. Como se conheceram? A informação de que todos tinham o ensino médio apenas levou a descoberta de que foram colegas nos últimos dois anos de escola.
Agora é hora de levantar a motivação do assassinato.
No dia seguinte foi dia de depoimento das famílias e de ler o relatório dos peritos das análises criminais.
Primeiro item a considerar: todos estavam fazendo uso de maconha. Podemos investigar então se foi um acerto de contas com o tráfico de drogas. Outra conclusão que os tiros foram dados em rodízio. O assassino baleou todos os três com um tiro na região torácica e depois voltou dando um tiro na cabeça de cada um para fazer o serviço de fato. O terceiro fato levantado foi que havia rastros de apenas uma moto além do carro em que as vítimas estavam.
Nesse momento as peças do quebra cabeça estão todas espalhadas, era preciso juntar para ver aonde ainda faltam peças.
Vamos aos depoimentos dos familiares. A mãe de Samuel revelou que ele estava tentando voltar com a mãe de sua filha, mas que segundo estava sabendo, ela estava sendo amante do Pedrão. Um brutamonte no morro da Esperança e que tinha dado um recado para que a deixasse em paz.
No depoimento da irmã de Adauto Gomes foi o mais relevante naquele momento. Ela deixou escapar uma dívida com o tráfico de drogas e as ameaças de um traficante. Apertada para revelar quem era o traficante que estava ameaçando, o nome de Pedrão foi novamente citado.
Os depoimentos dos familiares da terceira vítima pareceram menos esclarecedores. Apenas casos envolvendo paquerinhas. O rapaz era boa pinta.
Pedrão passou a ser a peça chave. Seja pela dívida de Adauto com seu negócio, seja pelo caso com a ex de Samuel. Toda a polícia de Mutum sabia que Pedrão era a chefia do tráfico no morro da Esperança, porém a barra lá não era tão pesada, era administrável no jargão do delegado. Há outro morro na cidade em que o tráfico joga mais duro.
Para a polícia atrair Pedrão para o depoimento, usou-se o argumento que ele conhecia os três por ser muito querido na comunidade. Pedrão atendeu a intimação sem receios e foi à polícia na hora marcada. A tranquilidade do brutamonte levou Dr. Ramos ao seguinte raciocínio: “Ou ele não tem nada haver com o crime ou aprendeu a arte de representar muito bem”.
Nada no depoimento de Pedrão deixava claro que teria sido ele. Em off confessou a ameaça a Adauto, mas revelou que a dívida era pequena e que não valia a pena ter um cadáver chamando atenção da polícia, portanto jamais executaria a ameaça. Era apenas para cumprir o ofício da atividade. Quanto à ex de Samuel também admitiu o caso, mas como tinha em geral a mulher que queria, estava pensando em deixa-la de lado. Era apenas diversão. Não valeria também assassinar o ex. O problema então era deles.
Dr. Ramos foi tomar um café depois do depoimento de Pedrão. Não queria admitir que não foi Pedrão, mas estava muito difícil dizer que foi.
Esse caso ia dar mais trabalho que o habitual. Vamos então às ligações dos celulares. Havia aprendido os celulares. Esse procedimento agora é padrão por aqui. Todo mundo liga para todo mundo. Todo mundo fala com todo mundo. Quem teria falado com os três nos últimos momentos de suas vidas, ou seja, na última semana pelo menos.
No celular de Samuel prevalecia ligações para a ex. Sempre ele insistindo para que ela voltasse, e ela chegou a ameaçar de falar para Pedrão. Aí vem o desespero do ex nas próximas ligações. Era um blefe da mulher ou ela estava tendo mesmo um caso com o criminoso?
No celular de Adauto não muita coisa interessante. Mas pelas ligações entre eles, percebeu-se que Adauto foi o mentor do encontro naquela quinta-feira para fumarem o baseado. Foi ele que levou o barato. Tinha negociado com Pedrão parte da dívida e parcelado as demais.
Mas, peraí, o que é isso? Indagou Dr. Ramos.
Em uma das conversas entre Adauto e Brasinha, uma espécie de segundo homem no tráfico do morro da Esperança, Adauto menciona a possibilidade de pagar a dívida com um Fiat Uno. E pela descrição parecia ser o Fiat Uno de Samuel.
Melhor desconsiderar. Não há nenhuma evidência que esse plano de Adauto tenha se consumado. Os três formam mortos quase simultaneamente. Nenhuma possibilidade mesmo.
Bem, vou dar uma olhada nas conversas do garanhão, por curiosidade, é claro. Dr. Ramos começou a ler as transcrições das ligações do celular de Bruno. Muita melação. Benzinho, filezinho, meu homem, essas coisas que são ditas com a finalidade de descolar uma boa transa. Mas teve uma que chamou atenção:
_Desconfio que meu marido esteja sabendo.
_Como assim?
_Ele tem me olhado com o olho meio torto. Há duas semanas que não me procura mais.
_Como que ele ficou sabendo?
_Não sei. Só desconfio. Estou te ligando para a gente dar um tempo. Entendeu.
_Mas se ele já estiver sabendo?
_Então é melhor você ir embora de Mutum. Ele é muito ciumento. Lembra aquele caso lá de Centenário?
_Sei. Naquela época, se não fosse os conselhos da mamãe. Ele tinha apagado o cara.
_E olha que o cara só me deu uma cantada. Agora imagina se ele fica sabendo de nós dois.
_Mas será que o fato de eu ser irmão dele, ele teria coragem de me matar?
_Não sei. É meu marido. Mas eu não sei o que se passa dentro da cabeça daquele homem. Sobretudo carregando um chifre.
_Olha que enrascada você me colocou.
_Eu não. Você é quem quis.
_Claro. Você se ofereceu.
_Mas tinha que ter pensado que eu sou a mulher do teu irmão.
_Você é que tinha que ter pensado isso.
_Você não sabe o que é uma mulher tarada por um homem como você.
_Tchau. Senão daqui a pouco você me convence a ir à sua casa.
_Vem. Eu tô sozinha.
Bruno desliga o telefone.
Essa conversa foi na manhã de quinta-feira que ocorreu o triplo homicídio.
Agora o angu encaroçou de vez. Pensou Dr. Ramos. A questão é: se chamar o irmão de Bruno para dar depoimento era expor para ele uma situação que ele então desconhecia, ou não. Bem, nesse caso vamos chamar a mulher aqui.
No dia seguinte Gorete deu seu depoimento. Falou abertamente do caso dela com Bruno e do receio que tinha de Bernardo ficar sabendo de tudo. Seu marido era um homem complexado. Achava-se mais feio que Bruno. Não tinha nem dez por cento de sucesso com as mulheres que Bruno tinha. E ela resolveu experimentar também o rapaz que já tinha ficado praticamente com metade das mulheres do bairro. No entanto não achava que era ele.
Na cabeça do Dr. Ramos passou também a hipótese de que poderia ser Gorete. Com receio do caso dela com o cunhado ser descoberto, poderia ter pedido o serviço para outro amante. Ela deveria ter pelo menos mais uns dois amantes. Cara de safadinha, ele tinha.
Meio que sem jeito para esgotar o caso. Dr. Ramos começou a pensar em outras possibilidades. Eram colegas na escola e não eram bons alunos. Vou ver o que descubro da vida de estudantes deles.
Foi até a escola puxar a vida estudantil dos três. Ficaram sabendo que eram muito folgados. Passando sempre pelas beiradas. No último ano na escola não foi diferente, narrava a diretora. Eles passaram de ano por que hoje em dia nas escolas públicas só se reprova quem quer. Na atual política educacional, o professor que não passar o aluno sofre uma espécie de punição. No entanto os três eram os únicos da sala que não conseguiu passar em tudo, ficando reprovados em matemática. Mas há uma resolução que quando aluno fica apenas em uma disciplina, faz-se a média global dele, e se der, ele é aprovado mesmo não passando naquela disciplina. Comentou a diretora que o professor de matemática ficou bastante chateado com esse fato no conselho de classe.
Dr. Ramos pegou o nome do professor. Era o professor Renato Pessoa. Bom professor de matemática, mas que tinha tido muito trabalho com os três durante o ano. Aposentou-se há dois anos.
Esse nome caiu como um mapa nos pensamentos do Dr. Ramos. Voltou para a delegacia e vasculhou a pasta que continha os depoimentos. Levantou se algum deles tinha ficha criminal. Só agora tinha dado conta disso. Havia uma única coisa. Um boletim de Ocorrência (B.O.) feito por dona Maria Lúcia Pessoa, esposa do professor.
Dr. Ramos pegou seu carro e dirigiu-se até a casa do professor a fim de falar com a esposa sobre o B.O.
_Bem, era natal e nós estávamos passeando com nosso neto na pracinha. Estávamos com ele para ver os enfeites de natal. Então se aproximou de nós esses três rapazes, embriagados, e começaram a insultar o Renato. Coisas do tipo: “Aí seu babaca, queria nos reprovar.” “Viu, foi só puxar o saco dos outros professores”. “Viu, professorzinho de merda, seu colegas não te ajudaram contra nós.” Teve um que chegou a dar um empurrão com força no meu marido que caiu. Fiz o B.O. para abrir um processo por danos morais. Mas Renato não deixou. Disse que faria justiça com as próprias mãos quando estivesse aposentado. Por assim poderia pagar na cadeia. Que mataria aqueles três. Essa vingança valia pela pena que viesse a pegar. Seria menos trabalhoso se defender de um crime que processar alguém por danos morais. Deixamos para lá. Pera aí, esses meninos não é os que foram mortos quinta-feira? Vocês não estão pensando que foi meu marido, estão?
As marcas de pneu próximo ao Fiat Uno era de uma Bros e Renato foi preso voltando de seu sítio, pilotando justamente uma Bros.






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