(da série: Dr. Ramos)
Já passa das
duas horas da manhã, José Roberto Ramos, conhecido no meio policial como Dr.
Ramos ainda estava acordado. O doutor ele faz questão, afinal, fez doutorado em
criminalística na Universidade de Bolonha, Itália. Ele é do grupo que entende
que o título de doutor é apenas para quem tem doutorado e não para qualquer
profissional de curso superior como costumam se aplicar por aí. Essa é a birra
dele com os advogados. Bem, com doutorado, o que ele faz em Mutum, uma cidade
espremida entre a fronteira de Minas Gerais com Espírito Santo? Nem ele sabe,
mas como detetive da Polícia Civil de Minas Gerais, prefere os casos de
interior. Não que o interior seja tão calmo. Ao contrário, o argumento do
Secretario de Segurança Publica na época em que designou para essa região foi o
grande número de homicídios ocorridos nessas plagas. Sim, Dr. Ramos é
responsável por uma grande região no leste de Minas Gerais.
Em sua
televisão estava passava a sua série favorita, Castle. Ele grava todos os dias
e todas as noites assiste ao menos uns três episódios. E aí seu celular tocou.
Três rapazes
entre vinte e dois e vinte e três anos foram encontrados mortos dentro de um Fiat
Uno estacionado em uma estradinha secundária no córrego da Ponte Alta, não tão
distante da cidade. Todos foram baleados impiedosamente. Pela posição dos
corpos, o que estava no volante foi baleado primeiro. Depois o carona que
parece que estava tentando sair do carro e depois o que estava no banco de
trás. Cada um levou dois tiros.
A primeira
coisa que Dr. Ramos fez foi avaliar e deduzir como tudo se deu. Todos tinham um
tiro certeiro na cabeça e um tiro no peito. Mas por que um tiro na cabeça e um
tiro no peito? Deduziu o detetive que primeiro o assassino, isto é, se for somente
um, chegou e deu um tiro em cada um e depois já com o domínio da situação,
resolveu dar um tiro, mais próximo na cabeça de cada um para certificar-se que
o serviço estava feito.
Pediu os
policiais para não andar muito em volta do carro, queria manter intactas as
marcas dos pneus, tanto do Fiat uno como a marca do assassino. Havia marcas de
moto também. Se for só uma moto, então deve ser de no máximo dois assassinos.
Mas parece que a moto tinha parado. A possibilidade de ser somente um então não
estava descartada.
Outra
questão que se deve considerar é o cigarro de maconha ainda aceso na mão do
motorista. Certamente estavam ali puxando um baseado básico.
O pessoal da
autopsia já estava no local. Com eles haveria mais conclusões.
Dr. Ramos
voltou para casa, deu aquela dormida peculiar de duas horas e precisamente às
sete e meia da manhã já estava em seu posto de trabalho na delegacia.
A essa
altura já tinha levantado o nome dos três rapazes assassinados. O motorista era
Samuel Cordeiro, que de cordeiro tinha muito pouco. Era motorista do caminhão
de entrega em uma loja de material de construção. Também era o dono do Fiat Uno
ano 2008, documentação em dia. Solteiro, pai de uma filha com dois anos de
idade.
O carona da
direita, possivelmente o segundo a ser baleado, era Adauto Gomes, ajudante de
pedreiro, ou seja, servente de pedreiro como chamam na região. Casado e pai de
uma criança com três anos de idade. A questão era: O que um homem casado e
trabalhando em um serviço tão cansativo estava fazendo em plena quinta-feira a
noite naquele lugar? Satisfazendo o vício, lógico.
O defunto
encontrado na parte de trás era Bruno Vieira, técnico em eletrônica, tinha
feito um curso por correspondência depois que se formou no ensino médio há
quatro anos na escola pública da cidade, e estava a mais ou menos um ano se
mantendo do seu oficio autônomo, trabalhando na pequena garagem de sua casa.
O
questionamento próximo de Dr. Ramos a si mesmo foi. Como se conheceram? A
informação de que todos tinham o ensino médio apenas levou a descoberta de que
foram colegas nos últimos dois anos de escola.
Agora é hora
de levantar a motivação do assassinato.
No dia
seguinte foi dia de depoimento das famílias e de ler o relatório dos peritos
das análises criminais.
Primeiro item
a considerar: todos estavam fazendo uso de maconha. Podemos investigar então se
foi um acerto de contas com o tráfico de drogas. Outra conclusão que os tiros
foram dados em rodízio. O assassino baleou todos os três com um tiro na região torácica
e depois voltou dando um tiro na cabeça de cada um para fazer o serviço de
fato. O terceiro fato levantado foi que havia rastros de apenas uma moto além
do carro em que as vítimas estavam.
Nesse
momento as peças do quebra cabeça estão todas espalhadas, era preciso juntar para
ver aonde ainda faltam peças.
Vamos aos
depoimentos dos familiares. A mãe de Samuel revelou que ele estava tentando
voltar com a mãe de sua filha, mas que segundo estava sabendo, ela estava sendo
amante do Pedrão. Um brutamonte no morro da Esperança e que tinha dado um
recado para que a deixasse em paz.
No
depoimento da irmã de Adauto Gomes foi o mais relevante naquele momento. Ela
deixou escapar uma dívida com o tráfico de drogas e as ameaças de um
traficante. Apertada para revelar quem era o traficante que estava ameaçando, o
nome de Pedrão foi novamente citado.
Os
depoimentos dos familiares da terceira vítima pareceram menos esclarecedores.
Apenas casos envolvendo paquerinhas. O rapaz era boa pinta.
Pedrão
passou a ser a peça chave. Seja pela dívida de Adauto com seu negócio, seja
pelo caso com a ex de Samuel. Toda a polícia de Mutum sabia que Pedrão era a
chefia do tráfico no morro da Esperança, porém a barra lá não era tão pesada,
era administrável no jargão do delegado. Há outro morro na cidade em que o
tráfico joga mais duro.
Para a
polícia atrair Pedrão para o depoimento, usou-se o argumento que ele conhecia
os três por ser muito querido na comunidade. Pedrão atendeu a intimação sem
receios e foi à polícia na hora marcada. A tranquilidade do brutamonte levou
Dr. Ramos ao seguinte raciocínio: “Ou ele não tem nada haver com o crime ou
aprendeu a arte de representar muito bem”.
Nada no
depoimento de Pedrão deixava claro que teria sido ele. Em off confessou a
ameaça a Adauto, mas revelou que a dívida era pequena e que não valia a pena
ter um cadáver chamando atenção da polícia, portanto jamais executaria a
ameaça. Era apenas para cumprir o ofício da atividade. Quanto à ex de Samuel
também admitiu o caso, mas como tinha em geral a mulher que queria, estava
pensando em deixa-la de lado. Era apenas diversão. Não valeria também
assassinar o ex. O problema então era deles.
Dr. Ramos
foi tomar um café depois do depoimento de Pedrão. Não queria admitir que não
foi Pedrão, mas estava muito difícil dizer que foi.
Esse caso ia
dar mais trabalho que o habitual. Vamos então às ligações dos celulares. Havia
aprendido os celulares. Esse procedimento agora é padrão por aqui. Todo mundo
liga para todo mundo. Todo mundo fala com todo mundo. Quem teria falado com os
três nos últimos momentos de suas vidas, ou seja, na última semana pelo menos.
No celular
de Samuel prevalecia ligações para a ex. Sempre ele insistindo para que ela
voltasse, e ela chegou a ameaçar de falar para Pedrão. Aí vem o desespero do ex
nas próximas ligações. Era um blefe da mulher ou ela estava tendo mesmo um caso
com o criminoso?
No celular
de Adauto não muita coisa interessante. Mas pelas ligações entre eles,
percebeu-se que Adauto foi o mentor do encontro naquela quinta-feira para
fumarem o baseado. Foi ele que levou o barato. Tinha negociado com Pedrão parte
da dívida e parcelado as demais.
Mas, peraí, o que é isso? Indagou Dr. Ramos.
Em uma das
conversas entre Adauto e Brasinha, uma espécie de segundo homem no tráfico do
morro da Esperança, Adauto menciona a possibilidade de pagar a dívida com um
Fiat Uno. E pela descrição parecia ser o Fiat Uno de Samuel.
Melhor
desconsiderar. Não há nenhuma evidência que esse plano de Adauto tenha se
consumado. Os três formam mortos quase simultaneamente. Nenhuma possibilidade
mesmo.
Bem, vou dar uma olhada nas conversas
do garanhão, por curiosidade, é claro. Dr. Ramos começou a ler as transcrições das ligações do
celular de Bruno. Muita melação. Benzinho, filezinho, meu homem, essas coisas
que são ditas com a finalidade de descolar uma boa transa. Mas teve uma que
chamou atenção:
_Desconfio
que meu marido esteja sabendo.
_Como assim?
_Ele tem me
olhado com o olho meio torto. Há duas semanas que não me procura mais.
_Como que
ele ficou sabendo?
_Não sei. Só
desconfio. Estou te ligando para a gente dar um tempo. Entendeu.
_Mas se ele
já estiver sabendo?
_Então é
melhor você ir embora de Mutum. Ele é muito ciumento. Lembra aquele caso lá de
Centenário?
_Sei.
Naquela época, se não fosse os conselhos da mamãe. Ele tinha apagado o cara.
_E olha que
o cara só me deu uma cantada. Agora imagina se ele fica sabendo de nós dois.
_Mas será
que o fato de eu ser irmão dele, ele teria coragem de me matar?
_Não sei. É
meu marido. Mas eu não sei o que se passa dentro da cabeça daquele homem.
Sobretudo carregando um chifre.
_Olha que
enrascada você me colocou.
_Eu não.
Você é quem quis.
_Claro. Você
se ofereceu.
_Mas tinha
que ter pensado que eu sou a mulher do teu irmão.
_Você é que
tinha que ter pensado isso.
_Você não
sabe o que é uma mulher tarada por um homem como você.
_Tchau.
Senão daqui a pouco você me convence a ir à sua casa.
_Vem. Eu tô
sozinha.
Bruno
desliga o telefone.
Essa
conversa foi na manhã de quinta-feira que ocorreu o triplo homicídio.
Agora o angu encaroçou de vez. Pensou Dr. Ramos. A questão é: se
chamar o irmão de Bruno para dar depoimento era expor para ele uma situação que
ele então desconhecia, ou não. Bem, nesse caso vamos chamar a mulher aqui.
No dia
seguinte Gorete deu seu depoimento. Falou abertamente do caso dela com Bruno e
do receio que tinha de Bernardo ficar sabendo de tudo. Seu marido era um homem
complexado. Achava-se mais feio que Bruno. Não tinha nem dez por cento de
sucesso com as mulheres que Bruno tinha. E ela resolveu experimentar também o
rapaz que já tinha ficado praticamente com metade das mulheres do bairro. No
entanto não achava que era ele.
Na cabeça do
Dr. Ramos passou também a hipótese de que poderia ser Gorete. Com receio do
caso dela com o cunhado ser descoberto, poderia ter pedido o serviço para outro
amante. Ela deveria ter pelo menos mais uns dois amantes. Cara de safadinha,
ele tinha.
Meio que sem
jeito para esgotar o caso. Dr. Ramos começou a pensar em outras possibilidades.
Eram colegas na escola e não eram bons
alunos. Vou ver o que descubro da vida de estudantes deles.
Foi até a
escola puxar a vida estudantil dos três. Ficaram sabendo que eram muito
folgados. Passando sempre pelas beiradas. No último ano na escola não foi
diferente, narrava a diretora. Eles passaram de ano por que hoje em dia nas
escolas públicas só se reprova quem quer. Na atual política educacional, o
professor que não passar o aluno sofre uma espécie de punição. No entanto os
três eram os únicos da sala que não conseguiu passar em tudo, ficando
reprovados em matemática. Mas há uma resolução que quando aluno fica apenas em
uma disciplina, faz-se a média global dele, e se der, ele é aprovado mesmo não
passando naquela disciplina. Comentou a diretora que o professor de matemática
ficou bastante chateado com esse fato no conselho de classe.
Dr. Ramos
pegou o nome do professor. Era o professor Renato Pessoa. Bom professor de
matemática, mas que tinha tido muito trabalho com os três durante o ano.
Aposentou-se há dois anos.
Esse nome
caiu como um mapa nos pensamentos do Dr. Ramos. Voltou para a delegacia e
vasculhou a pasta que continha os depoimentos. Levantou se algum deles tinha
ficha criminal. Só agora tinha dado conta disso. Havia uma única coisa. Um
boletim de Ocorrência (B.O.) feito por dona Maria Lúcia Pessoa, esposa do
professor.
Dr. Ramos
pegou seu carro e dirigiu-se até a casa do professor a fim de falar com a
esposa sobre o B.O.
_Bem, era
natal e nós estávamos passeando com nosso neto na pracinha. Estávamos com ele
para ver os enfeites de natal. Então se aproximou de nós esses três rapazes,
embriagados, e começaram a insultar o Renato. Coisas do tipo: “Aí seu babaca,
queria nos reprovar.” “Viu, foi só puxar o saco dos outros professores”. “Viu,
professorzinho de merda, seu colegas não te ajudaram contra nós.” Teve um que
chegou a dar um empurrão com força no meu marido que caiu. Fiz o B.O. para
abrir um processo por danos morais. Mas Renato não deixou. Disse que faria
justiça com as próprias mãos quando estivesse aposentado. Por assim poderia
pagar na cadeia. Que mataria aqueles três. Essa vingança valia pela pena que
viesse a pegar. Seria menos trabalhoso se defender de um crime que processar
alguém por danos morais. Deixamos para lá. Pera aí, esses meninos não é os que
foram mortos quinta-feira? Vocês não estão pensando que foi meu marido, estão?
As marcas de
pneu próximo ao Fiat Uno era de uma Bros e Renato foi preso voltando de seu
sítio, pilotando justamente uma Bros.
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