terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A LAMA - CAPITULO I

CAPÍTULO I
O bendito relógio despertou, ainda é noite lá fora. Gilson pulou da cama, passou rapidamente a mão pelo rosto e pelo peito como se fosse o sinal da cruz e foi catando a roupa para vestir. Olhou para trás e viu sua esposa dormindo profundamente. No quarto ao lado seus dois filhos também dormiam. Um em cada cama, luxo que ele não teve na infância.
O homem de pouca idade era vaqueiro em uma fazenda entre Baixo Guandu e Mascarenhas. Lugar bom para se viver. O curral ficava entre a linha férrea e o rio que não é mais tão doce assim. A lama das Barragens já havia chegado por ali. Era um fedor do cão. Só agora ele acredita que realmente o homem está destruindo a natureza.
Esse verão é o mais quente que já vivenciara, era novembro e nem sinal de chuva e para complicar, não podia pegar mais água no maior rio da região. A silagem para o gado estava quase no fim. Ainda bem que convenceu o patrão a fazer os silos, senão não haveria vacas para ordenhar nessa manhã, e sem vaca, não haveria comida para ele e para sua família. Tirar leite era o que ele sabia fazer. Droga de vida. Ele poderia ter outra profissão. Mas gostava do que fazia. O cheiro do curral lhe agradava muito. Nada se compara pegar em uma teta macia, cheia do líquido branco que alimenta crianças e adultos.
Foi filosofando assim enquanto caminhava para o curral. Em sua companhia, Fariseu e Algodão, seus dois cães. Não teve dificuldade para passar as vacas para dentro do curral. Elas já esperavam por isso. Com os úberes cheios e os bezerros de estômagos vazios, presos na tarde anterior. Ligou o velho radinho que fica na trave, ligado à energia pelo fio desencapado que passava por cima do tronco horizontal. Já ficava o radinho sintonizado na Rádio Aimorés. Música caipira das boas era as que tocavam de manhã. O programa do Celso Correia era o melhor da região. Esse entendia de música caipira e para estar ao vivo já às quatro da manhã, só madrugando igual a ele. Era parceiro do homem do campo. Enquanto tirava leite, gostava de cantar junto. Dedilhava um velho violão em noites de nada para fazer.
Assim que peou a primeira vaca, a programação do locutor matutino foi interrompida para dar um alerta:
_Atenção caro ouvinte. Aqui na cidade de Aimorés está acontecendo um fato estranho. Muito estranho. Várias pessoas estão andando pelas ruas, cambaleantes. Muitos deles portam algum tipo de artefato. Estão matando todo tipo de animais com sangue que encontram pela frente. Sobretudo aves e mamíferos. Você que é do campo, não venha pra cidade. Você que é da cidade não saia de casa.
Ouviu-se um barulho como que se quisesse invadir a rádio. O locutor parou de falar por alguns segundos.
_Desculpe caro ouvinte. Alguns desses cambaleantes estão querendo entrar na rádio. Fechamos nossas portas até que alguém venha nos salvar.
Como contar causos fazia parte da programação de Celso Correia, Gilson achou graça.
_Vai falar mentira para outro, rapaz. Concluiu.
Sentia naquela manhã quente, em que o sol surge um pouco mais tarde por causa do horário de verão, um ar pesado sem sua volta. Parecia que o dia que estava para nascer seria um dia sufocado, doentio. Ouviu passos vindos ao longe. Os cachorros em volta do curral latiam. Ele chamou por eles:
_Fariseu, Algodão, quietos.
Mas os cachorros não estavam latindo à toa. Um grupo enorme de pessoas estava vindo longe, na estradinha. Caminhavam com certa pressa e cambaleantes. Os cachorros latiam cada vez com mais força. Os cambaleantes pareciam não se importar com a possibilidade de mordidas dos cachorros. O sol começava a surgir sobre a colina. Caminhavam em direção ao curral. Eram uns duzentos, mais ou menos.
_Que isso, meu Deus? Indagou Gilson dentro do curral, já ordenhando a terceira vaca do dia.
Os cachorros avançaram apesar do chamado do dono. Assim que os animais morderam nas canelas mais próximas, os cambaleantes abaixaram, pegaram os cachorros e começaram a rasgar os couros peludos. Uns sete mais próximos começaram a beber o sangue dos caninos. Gilson que olhava de longe, entre as vacas, achou estranho. Deixou o curral e gritou de longe.
_Olá, quem são vocês? O que vocês querem?
O grupo dos esfarrapados estava cada vez mais perto. Os da frente tinham sangue escorrendo pelo queixo, sangue do Fariseu e do Algodão.
_Quem são vocês? O que vocês querem? Repetiu a pergunta o perplexo vaqueiro. Não obteve respostas. Viu que alguns portavam machados, picaretas, barras de ferro e outros utensílios úteis para quem quer destruir algo.
Sem entender a presença daquelas pessoas naquela manhã em que o sol acabara de nascer, correu par dentro de casa. O grupo dividiu-se em dois, enquanto uma parte seguia para o curral, a outra metade tomou a direção da pequena casa branca de janelas azuis perto de uma pitangueira.
Gilson entrou ofegante, acordou a solavancos a mulher que não entendia o que estava acontecendo. Acordaram as crianças. Olharam pelas gretas das janelas e perceberam que a casa estava toda cercada.
Ouvia os mugidos fortes vindo do curral. Como defender as vacas e os bezerros se nem os cães detiveram esse grupo esquisito de pessoas avançando em direção à propriedade rural.
A esposa de Gilson estava com o terço na mão murmurando orações incompletas com os dois meninos em volta. Gilson com a espingarda nas mãos mirando para a porta da sala.
Foi um erro. A porta da cozinha era mais frágil e foi essa porta que cedeu primeiro às pancadas dadas pelos cambaleantes. Quando ele mirou para a cozinha, já havia uns dez dentro do cômodo. Atirou na testa do que estava mais perto que só balançou a cabeça com o tiro e seguiu em pé. Gilson balbuciou uma esconjuração e tentou recarregar a espingarda. Não deu tempo. Uns cinco deles já estavam segurando lhe pelo braço. Por mais que ele tentava sair não conseguia. Tropeçou em uma cadeira ao se afastar e caiu, trazendo para chão uns três sobre ele. Foram direto no pescoço do vaqueiro e começaram a sugar o sangue esguichado.
O resto do grupo invadiu o quarto. Amedrontada, a mulher sequer teve a iniciativa de fechar a porta. Encurralada com seus dois filhos, elevou o crucifixo do terço que tinha nas mãos, mas em nada adiantou. Avançaram sobre ela e seus filhos e a carnificina aconteceu em cima da cama, manchando um pouco o lenço de sangue, já que qualquer gota disponível era consumida por aqueles seres, que não podia mais ser chamados de humanos. Era um amontoado de corpo com feição de falecidos, mas com vivacidade suficiente para matar e consumir sangue.
No curral, não foi diferente. Não sobrou uma vaca ou bezerro sequer. O mesmo com as galinhas. Nem o leitão no chiqueiro teve sorte diferente. Tudo que tinha sangue foi morto e o líquido vermelho sugado o máximo possível.
O sol estava a pino quando Gilson despertou no meio da sala. Apesar do pescoço perfurado, não sentia dor nenhuma. A vista estava um pouco turva, mas podia perfeitamente diferenciar o que se encontrava a sua frente. O olfato parecia mais apurado. Foi com andar cambaleante até o quarto e viu sua mulher e seus dois filhos também despertarem. Parecia que estavam dormindo. Nenhum sangue saia da ferida. Não falavam nada. Não admiravam nada. Não sentiam fome a não ser de sangue.
Saíram cambaleando pelo terreiro. Perto do galinheiro tinha várias penas e peles de galinha no chão. No chiqueiro o leitão havia sido retalhado e apenas a gordura e nervos sobre os ossos. Passaram a mão, cada um em uma ferramenta, e foram ao curral. As moscas já rodeavam aqueles bezerros e vacas amontoados sobre as fezes e o leite derramado. Começaram a mexer nos animais mortos a procura de sangue. Uma gota ao menos. Mas não conseguiram nada. Caminharam em direção a um urubu que pousou sobre a cerca do curral, mas a ave negra, percebendo o perigo, voou.  
Olharam para a linha férrea e nada. Nenhum trem havia passado por ali hoje. Mais ao longe a estrada asfaltada e nenhum carro por ali. O vale do Rio Doce parece ter morrido de vez. Voltaram para a casa, mas não adentraram nela. Foram para o rio e viram os peixes mortos boiando. Pegaram uma vara comprida de bambu e puxaram os mais próximos da margem. Rasgaram os peixes mortos com os dentes e sugaram o sangue antes mesmo que alguma gota caísse no chão. Era pouco, mas dava para matar momentaneamente a sede que tinham. Sede de sangue.
Começaram a andar em direção aos trilhos indo para a cidade de Baixo Guandu.
Antes de chegar à cidade, entraram nos domínios da propriedade vizinha. Não chamaram por ninguém e nem lembravam mais de quem morava ali.
Os moradores, uma família composta do casal e apenas uma criança de onze anos, reconheceram os quatro vizinhos, mas pelo andar cambaleante deles, notaram que não poderiam abrir lhes as portas. O homem gritou lá de dentro:
_Vá embora Gilson. Vão embora vocês todos. Passaram por aqui e sugaram todas as vacas. Nós fugimos para longe antes que eles nos vissem. Mas vocês foram pegos. Não queremos mal a vocês. Vão embora pelo amor de Deus.
Mas Gilson e os outros três pareciam não ouvir os apelos do vaqueiro vizinho. Iam se aproximando cada vez mais da casa com a boca salivando. Nenhum cachorro veio acuá-los. Todos foram sugados na passagem mesmo grupo que atacou sua propriedade. Então um tiro acertou o peito de Gilson que balançou o corpo e quase caiu. Nem a mulher e nem os filhos gritaram. Como se fosse comum. Não saia nenhuma palavra da boca deles, apenas uns grunhidos esquisitos.  Assim que a arma do dono da casa foi recarregada, acertou um tiro na cabeça do filho mais velho. Esse chegou a cair no chão. Não sangrou nem um pouco pelo fato de não ter sangue em nenhuma parte do corpo dele, apenas cambaleou e caiu no chão. Levantou em breve, olhou em direção a casa e aproximou do grupo que antes era sua família. Agora não era mais família. Não havia mais pai, mãe e nem filhos. Apenas quatro seres que, por instinto, andavam juntos em busca de sangue. Cada um com uma ferramenta na mão. Sequer suavam perante o sol escaldante. Apenas caminhavam ao farejar sangue nas veias dos vizinhos que antes eram amigos.
Como tiro não resolvia nada, o vaqueiro fechou bem sua casa com todas as trancas disponíveis, arrastaram os móveis para trás das portas e seguiu-se um silêncio total.
Os quatros cambaleantes aproximaram da porta da sala, forçaram, forçaram e os sofás atrás da porta não cediam. Empurraram as janelas, mas não conseguiam retorcer as grades.
Farejando as paredes, rodearam e forçaram a porta da cozinha. Atrás dela estava a geladeira. Não tinha jeito. O menino mais novo saiu da varanda e começou a subir uma escada que dava na laje do banheiro. O ato foi seguido pelos demais. Apesar do sol quente, sequer tocaram na água da caixa. Começaram a destelhar um canto da casa até que todos passaram para cima do forro. Usaram suas ferramentas, quebrando uma pare do forro e caindo dentro do quarto de visitas.
Pronto, estavam dentro da casa que já visitaram em tantas noites. Rondaram por todos os cômodos e nenhum sinal dos três seres humanos. Mas não tinham como sair da casa a não ser que tirassem os móveis que estavam atrás das portas. O filho maior farejou com profundidade, voltou até o quarto de casal, bateu com a cavadeira na porta frágil do guarda roupa, descobrindo a família amedrontada entre as camisas. Os demais chegaram rapidamente. Avançaram sobre os três. Houve um princípio de resistência. Chegaram a empurrar os cambaleantes no chão, mas não tiveram como escapar pelo fato da casa estar toda fechada. Enquanto a criança mais velha dos cambaleantes tomou conta da criança ainda humana, as mulheres se atravancaram sobre a cama. A criança mais nova e Gilson perseguiram o homem até a sala. Sugaram todo sangue que puderam e eles ficaram revigorados o suficiente para seguir em busca de mais sangue.




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