CAPÍTULO I
O bendito relógio despertou,
ainda é noite lá fora. Gilson pulou da cama, passou rapidamente a mão pelo
rosto e pelo peito como se fosse o sinal da cruz e foi catando a roupa para
vestir. Olhou para trás e viu sua esposa dormindo profundamente. No quarto ao
lado seus dois filhos também dormiam. Um em cada cama, luxo que ele não teve na
infância.
O homem de pouca idade era
vaqueiro em uma fazenda entre Baixo Guandu e Mascarenhas. Lugar bom para se
viver. O curral ficava entre a linha férrea e o rio que não é mais tão doce
assim. A lama das Barragens já havia chegado por ali. Era um fedor do cão. Só
agora ele acredita que realmente o homem está destruindo a natureza.
Esse verão é o mais quente que já
vivenciara, era novembro e nem sinal de chuva e para complicar, não podia pegar
mais água no maior rio da região. A silagem para o gado estava quase no fim.
Ainda bem que convenceu o patrão a fazer os silos, senão não haveria vacas para
ordenhar nessa manhã, e sem vaca, não haveria comida para ele e para sua
família. Tirar leite era o que ele sabia fazer. Droga de vida. Ele poderia ter
outra profissão. Mas gostava do que fazia. O cheiro do curral lhe agradava
muito. Nada se compara pegar em uma teta macia, cheia do líquido branco que
alimenta crianças e adultos.
Foi filosofando assim enquanto
caminhava para o curral. Em sua companhia, Fariseu e Algodão, seus dois cães.
Não teve dificuldade para passar as vacas para dentro do curral. Elas já
esperavam por isso. Com os úberes cheios e os bezerros de estômagos vazios,
presos na tarde anterior. Ligou o velho radinho que fica na trave, ligado à
energia pelo fio desencapado que passava por cima do tronco horizontal. Já
ficava o radinho sintonizado na Rádio Aimorés. Música caipira das boas era as
que tocavam de manhã. O programa do Celso Correia era o melhor da região. Esse
entendia de música caipira e para estar ao vivo já às quatro da manhã, só
madrugando igual a ele. Era parceiro do homem do campo. Enquanto tirava leite,
gostava de cantar junto. Dedilhava um velho violão em noites de nada para
fazer.
Assim que peou a primeira vaca, a
programação do locutor matutino foi interrompida para dar um alerta:
_Atenção caro ouvinte. Aqui na cidade de Aimorés está acontecendo um
fato estranho. Muito estranho. Várias pessoas estão andando pelas ruas, cambaleantes.
Muitos deles portam algum tipo de artefato. Estão matando todo tipo de animais
com sangue que encontram pela frente. Sobretudo aves e mamíferos. Você que é do
campo, não venha pra cidade. Você que é da cidade não saia de casa.
Ouviu-se um barulho como que se
quisesse invadir a rádio. O locutor parou de falar por alguns segundos.
_Desculpe caro ouvinte. Alguns desses cambaleantes estão querendo entrar
na rádio. Fechamos nossas portas até que alguém venha nos salvar.
Como contar causos fazia parte da
programação de Celso Correia, Gilson achou graça.
_Vai falar mentira para outro,
rapaz. Concluiu.
Sentia naquela manhã quente, em
que o sol surge um pouco mais tarde por causa do horário de verão, um ar pesado
sem sua volta. Parecia que o dia que estava para nascer seria um dia sufocado, doentio.
Ouviu passos vindos ao longe. Os cachorros em volta do curral latiam. Ele
chamou por eles:
_Fariseu, Algodão, quietos.
Mas os cachorros não estavam
latindo à toa. Um grupo enorme de pessoas estava vindo longe, na estradinha.
Caminhavam com certa pressa e cambaleantes. Os cachorros latiam cada vez com
mais força. Os cambaleantes pareciam não se importar com a possibilidade de
mordidas dos cachorros. O sol começava a surgir sobre a colina. Caminhavam em
direção ao curral. Eram uns duzentos, mais ou menos.
_Que isso, meu Deus? Indagou
Gilson dentro do curral, já ordenhando a terceira vaca do dia.
Os cachorros avançaram apesar do
chamado do dono. Assim que os animais morderam nas canelas mais próximas, os
cambaleantes abaixaram, pegaram os cachorros e começaram a rasgar os couros
peludos. Uns sete mais próximos começaram a beber o sangue dos caninos. Gilson
que olhava de longe, entre as vacas, achou estranho. Deixou o curral e gritou
de longe.
_Olá, quem são vocês? O que vocês
querem?
O grupo dos esfarrapados estava
cada vez mais perto. Os da frente tinham sangue escorrendo pelo queixo, sangue
do Fariseu e do Algodão.
_Quem são vocês? O que vocês
querem? Repetiu a pergunta o perplexo vaqueiro. Não obteve respostas. Viu que
alguns portavam machados, picaretas, barras de ferro e outros utensílios úteis
para quem quer destruir algo.
Sem entender a presença daquelas
pessoas naquela manhã em que o sol acabara de nascer, correu par dentro de
casa. O grupo dividiu-se em dois, enquanto uma parte seguia para o curral, a
outra metade tomou a direção da pequena casa branca de janelas azuis perto de
uma pitangueira.
Gilson entrou ofegante, acordou a
solavancos a mulher que não entendia o que estava acontecendo. Acordaram as
crianças. Olharam pelas gretas das janelas e perceberam que a casa estava toda
cercada.
Ouvia os mugidos fortes vindo do
curral. Como defender as vacas e os bezerros se nem os cães detiveram esse
grupo esquisito de pessoas avançando em direção à propriedade rural.
A esposa de Gilson estava com o
terço na mão murmurando orações incompletas com os dois meninos em volta.
Gilson com a espingarda nas mãos mirando para a porta da sala.
Foi um erro. A porta da cozinha
era mais frágil e foi essa porta que cedeu primeiro às pancadas dadas pelos
cambaleantes. Quando ele mirou para a cozinha, já havia uns dez dentro do
cômodo. Atirou na testa do que estava mais perto que só balançou a cabeça com o
tiro e seguiu em pé. Gilson balbuciou uma esconjuração e tentou recarregar a
espingarda. Não deu tempo. Uns cinco deles já estavam segurando lhe pelo braço.
Por mais que ele tentava sair não conseguia. Tropeçou em uma cadeira ao se
afastar e caiu, trazendo para chão uns três sobre ele. Foram direto no pescoço
do vaqueiro e começaram a sugar o sangue esguichado.
O resto do grupo invadiu o
quarto. Amedrontada, a mulher sequer teve a iniciativa de fechar a porta.
Encurralada com seus dois filhos, elevou o crucifixo do terço que tinha nas
mãos, mas em nada adiantou. Avançaram sobre ela e seus filhos e a carnificina
aconteceu em cima da cama, manchando um pouco o lenço de sangue, já que
qualquer gota disponível era consumida por aqueles seres, que não podia mais
ser chamados de humanos. Era um amontoado de corpo com feição de falecidos, mas
com vivacidade suficiente para matar e consumir sangue.
No curral, não foi diferente. Não
sobrou uma vaca ou bezerro sequer. O mesmo com as galinhas. Nem o leitão no
chiqueiro teve sorte diferente. Tudo que tinha sangue foi morto e o líquido
vermelho sugado o máximo possível.
O sol estava a pino quando Gilson
despertou no meio da sala. Apesar do pescoço perfurado, não sentia dor nenhuma.
A vista estava um pouco turva, mas podia perfeitamente diferenciar o que se
encontrava a sua frente. O olfato parecia mais apurado. Foi com andar
cambaleante até o quarto e viu sua mulher e seus dois filhos também
despertarem. Parecia que estavam dormindo. Nenhum sangue saia da ferida. Não
falavam nada. Não admiravam nada. Não sentiam fome a não ser de sangue.
Saíram cambaleando pelo terreiro.
Perto do galinheiro tinha várias penas e peles de galinha no chão. No chiqueiro
o leitão havia sido retalhado e apenas a gordura e nervos sobre os ossos.
Passaram a mão, cada um em uma ferramenta, e foram ao curral. As moscas já
rodeavam aqueles bezerros e vacas amontoados sobre as fezes e o leite
derramado. Começaram a mexer nos animais mortos a procura de sangue. Uma gota
ao menos. Mas não conseguiram nada. Caminharam em direção a um urubu que pousou
sobre a cerca do curral, mas a ave negra, percebendo o perigo, voou.
Olharam para a linha férrea e
nada. Nenhum trem havia passado por ali hoje. Mais ao longe a estrada asfaltada
e nenhum carro por ali. O vale do Rio Doce parece ter morrido de vez. Voltaram
para a casa, mas não adentraram nela. Foram para o rio e viram os peixes mortos
boiando. Pegaram uma vara comprida de bambu e puxaram os mais próximos da
margem. Rasgaram os peixes mortos com os dentes e sugaram o sangue antes mesmo
que alguma gota caísse no chão. Era pouco, mas dava para matar momentaneamente
a sede que tinham. Sede de sangue.
Começaram a andar em direção aos
trilhos indo para a cidade de Baixo Guandu.
Antes de chegar à cidade,
entraram nos domínios da propriedade vizinha. Não chamaram por ninguém e nem
lembravam mais de quem morava ali.
Os moradores, uma família
composta do casal e apenas uma criança de onze anos, reconheceram os quatro
vizinhos, mas pelo andar cambaleante deles, notaram que não poderiam abrir lhes
as portas. O homem gritou lá de dentro:
_Vá embora Gilson. Vão embora
vocês todos. Passaram por aqui e sugaram todas as vacas. Nós fugimos para longe
antes que eles nos vissem. Mas vocês foram pegos. Não queremos mal a vocês. Vão
embora pelo amor de Deus.
Mas Gilson e os outros três
pareciam não ouvir os apelos do vaqueiro vizinho. Iam se aproximando cada vez
mais da casa com a boca salivando. Nenhum cachorro veio acuá-los. Todos foram
sugados na passagem mesmo grupo que atacou sua propriedade. Então um tiro
acertou o peito de Gilson que balançou o corpo e quase caiu. Nem a mulher e nem
os filhos gritaram. Como se fosse comum. Não saia nenhuma palavra da boca
deles, apenas uns grunhidos esquisitos.
Assim que a arma do dono da casa foi recarregada, acertou um tiro na
cabeça do filho mais velho. Esse chegou a cair no chão. Não sangrou nem um
pouco pelo fato de não ter sangue em nenhuma parte do corpo dele, apenas
cambaleou e caiu no chão. Levantou em breve, olhou em direção a casa e
aproximou do grupo que antes era sua família. Agora não era mais família. Não
havia mais pai, mãe e nem filhos. Apenas quatro seres que, por instinto,
andavam juntos em busca de sangue. Cada um com uma ferramenta na mão. Sequer
suavam perante o sol escaldante. Apenas caminhavam ao farejar sangue nas veias
dos vizinhos que antes eram amigos.
Como tiro não resolvia nada, o
vaqueiro fechou bem sua casa com todas as trancas disponíveis, arrastaram os
móveis para trás das portas e seguiu-se um silêncio total.
Os quatros cambaleantes
aproximaram da porta da sala, forçaram, forçaram e os sofás atrás da porta não
cediam. Empurraram as janelas, mas não conseguiam retorcer as grades.
Farejando as paredes, rodearam e
forçaram a porta da cozinha. Atrás dela estava a geladeira. Não tinha jeito. O
menino mais novo saiu da varanda e começou a subir uma escada que dava na laje
do banheiro. O ato foi seguido pelos demais. Apesar do sol quente, sequer
tocaram na água da caixa. Começaram a destelhar um canto da casa até que todos
passaram para cima do forro. Usaram suas ferramentas, quebrando uma pare do
forro e caindo dentro do quarto de visitas.
Pronto, estavam dentro da casa
que já visitaram em tantas noites. Rondaram por todos os cômodos e nenhum sinal
dos três seres humanos. Mas não tinham como sair da casa a não ser que tirassem
os móveis que estavam atrás das portas. O filho maior farejou com profundidade,
voltou até o quarto de casal, bateu com a cavadeira na porta frágil do guarda
roupa, descobrindo a família amedrontada entre as camisas. Os demais chegaram
rapidamente. Avançaram sobre os três. Houve um princípio de resistência.
Chegaram a empurrar os cambaleantes no chão, mas não tiveram como escapar pelo
fato da casa estar toda fechada. Enquanto a criança mais velha dos cambaleantes
tomou conta da criança ainda humana, as mulheres se atravancaram sobre a cama.
A criança mais nova e Gilson perseguiram o homem até a sala. Sugaram todo
sangue que puderam e eles ficaram revigorados o suficiente para seguir em busca
de mais sangue.
Nenhum comentário:
Postar um comentário