CAPÍTULO XI
Dona Leontina não engoliu o
relato superficial da filha. Sabia do namoro dela com o tal de Nivaldo.
Contaram para ela. Sabia até das intimidades. “No meu tempo não era assim”-
Pensava consigo.
Preocupada com o casamento de
Maria, que se aproximava, a mulher estendida na cama sentia falta do marido que
faleceu há dois anos. Falta apenas, saudade talvez, solidão não. Seus três
filhos não eram anjos, sabia. Eram humanos, metidos a moderninhos. – Essa
mocidade de hoje, hum! - Sabia que o namoro de Maria já ultrapassou os beijos e
abraços. Até onde já teria ido, não sabia. Sabia também que Marquinhos andava
fumando escondido. Sabia que Nivaldo não era um rapaz bem comportado. Poucas
mães o desejariam para genro.
Maria não a preocupava tanto.
Antônio Carlos era um bom partido. Nivaldo não. Fumava e bebia demasiadamente.
Era um verdadeiro estúrdio. Marli passava por problemas. Nem mais procurava as
coisas da Igreja.
Igreja. Leontina lembrou-se de
quando era moça e morava na roça. Loura, linda. Trabalhava a semana inteira.
Tratava dos porcos, socava arroz no pilão, fazia comida, lavava roupa na bica.
Pés descalços, vestido de chita ou carne-seca feito em casa. Feito em casa
também era a roupa de baixo, como se dizia naquela época.
Domingo. Pela manhã havia
trabalho. Preparava cedo o almoço. Era dia de comer frango com quiabo. Até às
dez horas devia estar todo mundo almoçado para terem tempo de arranjarem e ir
ao povoado. Eram sete quilômetros a pé. No povoado encontrava as amigas. Muitas
delas, primas. Depois da celebração geralmente tinha jogo de futebol. Junto com
as duas irmãs e mais três amigas procuravam um canto. Sempre vinha time de
fora. Sempre tinha um rapaz bonito no time visitante. Só o olhavam de soslaio.
Chegar como? Não davam um passo sem o acompanhamento dos olhos dos pais ou de
um dos irmãos.
Contava com dezenove anos. Era
atraente, principalmente com as bochechas rosadas de pó de arroz. Ela ia à
celebração todos os domingos. Mesmo que se sentido mal, cólicas menstruais, por
exemplo, falava que estava tudo bem. Naquele tempo ela era religiosa. Todas as
moças eram religiosas. Os rapazes não. Preferiam fica na vendinha bebendo e
jogando sinuca. Em casa, Leontina rezava o terço todo dia. A mãe é que tirava.
Ela e as duas irmãs recitavam repetidos pai-nossos e sussurradas ave-marias.
Sabia até a salve-rainha de cor. Isto é naquele tempo.
Não tardeou surgir pretendentes.
Primeiro foi o João do Miquinha. Moço alto e magro com um chapéu de abas
grandes. Mandava-lhe recados através de sua irmã. Insistiu muito. Ela não o
quis. Ele enfim desistiu.
Seu pai dava-lhe conselhos
curtos, diretos. –“filha minha não é égua para rapaz ficar repassando.”- falava
num tom autoritário, determinante. Ela e as duas irmãs sabiam o que ele queria
dizer. –“O maior desgosto da minha vida é ver uma de vocês barriguda antes do
tempo.”- completava a mãe, mais categórica.
Surgiu o segundo pretendente.
Rapaz louro como ela. Não era de ir à Igreja. Porém, não era chegado à
bebedeira da venda. Muitas vezes chegava ao povoado na hora do jogo de futebol.
Chegou a jogar algumas vezes no cascudinho, era perna de pau.
Um bilhetinho escrito num pedaço
de folha de caderno pautada chegou até às mãos dela. Ela demorou entender o que
estava escrito. Pouca escolaridade de ambos. O bilhete em suma dizia. –“Estou
querendo namorar você. Posso ir à tua casa conversar com teu pai?”- Era assim
que se procedia. Primeiro o rapaz tinha que conversar com o pai da moça, senão,
nada feito.
Todas elas olhavam para a estrada
sonhando com o dia que um cavaleiro alto, roupas bem engomadas, transpusesse a
porteira e chegasse em suas casas, sorrisse e perguntasse pelo pai delas,
conversasse com o chefe da família e depois viesse ao alpendre sentar-se ao
lado delas. Era um sonho coletivo.
-“Consentiria que ele viesse
conversar com seu pai ou não?”- Esse era o nó que Tina, assim a chamava em
casa, precisava desatar. Era o seu sonho também, que em breve poderia se tornar
realidade. Através de um bilhete foi procurada, e através de um bilhete disse o
seu sim a Athayde. Marcou para que ele viesse na quarta-feira. Falou com sua
mãe e esta transmitiu a informação ao seu pai.
Quarta-feira. O anoitecer chegou
e Athayde veio no seu cavalo mangalarga baio. Transpôs a porteira com certa
elegância. Apeou e amarrou o animal no jambeiro florescido.
O pai de Leontina estava no
alpendre com as vistas perdidas no horizonte.
O rapaz subiu os cinco degraus de
madeira. Cumprimentou o senhor de cabelos grisalhos cerimoniosamente. Falaram
das plantações, da colheita farta que estava preste a acontecer, do preço do
gado e, depois e tanto rodeio, do único objetivo pelo qual o rapaz estava ali.
O pai de Tina fez as suas
restrições. Só conversar, respeito pela donzela, encontros só na casa dela,
quartas e domingos. Isto é, -“aqui em casa”-. O pai da moça prosseguiu.
–Noivado e casório o mais rápido possível. Quem tá na chuva é para molhar. Arrematou
passando as mãos na grisalhice dos seus cabelos.
Athayde concordou com todos os
itens das restrições. Discordar de alguma era perder a concessão que o pai de
Tina estava lhe dando. Sabia que não era o único rapaz que se deixava impor
pelos pais das moças e nem fazia a ligação de que o casamento não passava de um
negócio, de uma barganha.
Noivado e casório o mais breve
possível. Athayde também desejava que fosse assim. Assim começou a frequentar a
casa de Tina. Aprendeu a chama-la pelo apelido, e ela a ele de Tide. Era até
meio poético. Tina e Tide. Começou a levantar o dinheiro para a compra do
necessário. Contava com vinte e seis anos. Idade ótima para o casamento.
Com sete meses saiu o noivado e
com mais cinco o casório. Tempo demais para aquela época. –“Ficaram cozinhando
o galo.”- Comentavam as mulheres preocupadas com a vida alheia.
Teve almoço na casa de ambos.
Almoção. Teve gente que veio de longe, parentes. O pessoal compareceu em rodo.
Era sábado, sábado de casamento. Não chegava a ser raridade, mas era sempre um
dia festivo.
Pela tarde foram à vila assinarem
os papéis. Tina estava linda dentro do vestido de noiva. Muitas moças a invejaram
naquele dia. Tide num terno comum azul marinho. Não estava nem bonito e nem
feio, apenas formal.
O casório no religioso ficou para
depois quando o padre viesse rezar alguma missa na vila, quando desse.
À noite, mais festa. Doces
coloridos com anilina. Todos comeram a vontade. No dia seguinte há quem estava
com os intestinos desregulados. Era de se esperar. Tina sorria largamente. Tide
tentava sorrir. Muitos esperavam o som da oito baixos romper no fundo da sala.
Cavalheiros convidariam suas damas prediletas. Dançariam noite adentro. Não
demorou muito, a oito baixos impôs a sua voz.
No meio da festa, Tide e Tina,
agora quase marido e mulher, foram para a casa nova em uma charrete.
Lua de mel. Naquele tempo não
tinha esse nome. Talvez chamasse primeira-noite, primeira-vez. Leontina
relembra sua quase ingenuidade. Que meninos não vinham de cegonha, isso ela já
sabia. Que era para serem iguais os cachorros com as cachorras, os bois com as
vacas, os cachaços com as porcas, isso também ela sabia. Na hora não tomou
nenhuma iniciativa, apenas fez o que Tide foi dizendo. Aconteceu. Foi dolorido.
Vieram as crianças. Primeiro veio
Maria. Depois, Marli. E por último, Marcus.
Vitória era um sonho. Falava-se
muito em Vitória naquele tempo. Era onde tinha trabalho a vontade, dinheiro
também. Athayde quis ir, ela não. Quase que ele foi sozinho. Na roça ele não
queria ficar: - Aqui a gente trabalha pra burro.- Argumentava. – No fim das
contas não sobra nada.
Vieram para a cidade. Empregou-se
ele na prefeitura. Carteira assinada, salário mínimo, abono família, naqueles
idos talvez compensasse.
Construiu uma casa onde hoje a
família mora. Compraram, pouco a pouco, os eletrodomésticos básicos: Televisão,
geladeira, liquidificador, ferro automático...
Os meninos cresceram. Tide
morreu, ela ficou, o casamento de Maria estava próximo.
OBS: Se você quiser acompanhar desde o primeiro capítulo, clique no link: CAPÍTULO 01
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