Eu sempre
revezo com meu filho nas aragens de terra. É o momento propício para fazer uma
boa grana, assim ele trabalha uma parte do dia enquanto eu durmo e tenho
condições orgânicas para virar a noite quando pego os terrenos maiores. Mas
essa semana, após um desentendimento típico de pai e filho, o desgraçado arrumou
outro serviço. Praguejava sempre que ele me fazia falta e o cansaço me abatia.
Naquele dia eu teria que virar a noite arando. O terreno era grande, porém com
um cercado bem no meio. Isso iria dificultar ainda mais. Era aproximadamente
02h00 na noite escura quando comecei a arar próximo ao quadrado cercado com
arame farpado. Eu tinha que manobrar para aproximar bastante do perímetro. Na
quarta vez que eu estava se aproximando cochilei no volante. Quando me
recompus, o trator havia rompido o arame enferrujado e feito um sulco profundo
sobre o terreno. Desliguei o trator, respirei fundo e acendi um cigarro. Comecei
a ouvir o choro de uma criança, estranho, o choro era forte e nenhuma casa por
perto, agora são duas crianças, e agora três, quatro, algumas, várias, uma
orquestra de choro infantil. De onde vinha? Parece que vinha do solo. Peguei a
lanterna e vi o sulco na terra cheio de sangue. O solo sob meus pés se mexia e
formavam rostos de crianças. O som do choro era persistente. Subi na máquina e
tentei ligá-la. A chave quebrou na ignição. Um cheiro de óleo diesel tomou
conta do ar. Desci novamente e percebi o tanque estava furado. Vi o combustível
manchando asas de anjos sobre o chão. Tremi e meu cigarro caiu aceso sobre o
líquido inflamável. O meu girico pegou fogo. No clarão da chama detectei uma
mantilha se aproximando. Todos os cães do córrego vieram para o mesmo lugar,
rodearam-me. Por alguns instantes, tanto eu quanto eles, ficamos imóveis. Mas
quando trisquei a botina no chão para assustá-los, avançaram sobre meu fatigado
corpo. Abocanhavam qualquer parte e mim. Arrastaram-me para fora do terreno.
Atacavam-me como se fosse enxame de abelhas. Uma presa rasgou-me no pescoço,
foi a mordida fatal. Apenas um corpo sem vida e todo retalhado sobre a terra
arada foi encontrado na manhã pelo dono da propriedade. Não sei se seria
diferente se tivessem me avisado que aquele cercado era um cemitério de anjos,
lugar onde se enterravam natimortos.
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