ERROS
& ACERTOS
Os dias ficam
pairando pelo tempo em um turbilhão dentro do meu pequeno quarto alugado no
velho casarão. Lá fora uma placa diz que aqui é uma pensão.
Quando saio
para lecionar em minhas aulas de língua portuguesa, fico imaginando a história
de cada aluno. Cada um com sua careta e com seus sonhos. Cada um com seus
silêncios e com seus barulhos. Cada um com seus vazios.
Um desses
alunos me chamou bastante atenção. Era um sujeito um pouco obeso, sempre de
cabeça baixa. Era o Altivo, da turma E do primeiro ano. Sempre mediano em suas
notas.
Um dia acordei
com vontade de conversar com algum aluno meu. Altivo sobressaiu em meu cérebro.
Até parece que ele estava escondido entre os neurônios.
Acolhi a
imagem de Altivo em minha mente como um pedido de socorro. Era preciso
conversar com ele. Olhei meu horário. A aula na turma dele será no quinto
período, o último.
Assim que
terminou meu último período, chamei Altivo para conversar mais um pouco. Ele
começou estranhando:
- Que foi
professor? Eu não sou de bagunçar sua aula.
- Não é isso
Altivo. Eu só quero te falar que te acho muito quieto, muito no seu canto. Eu
gostaria que você fosse mais participativo.
- Como assim
professor?
- Você gosta
de literatura? Vejo sempre você com um livro na mão.
- Gosto. Acho
que leio para me distrair.
- Como assim?
- Meu mundo é
muito chato, professor. Meu pai é um alcoólatra. Minha mãe, coitada, não sabe o
que fazer da vida. Passa o dia trabalhando de faxineira e a noite adormece em
frente à novela. Minha irmã vive envolvida com rapaz que não presta. Só
tranqueira.
- Puxa vida.
Um drama e tanto. Isso parece ser ruim, no entanto eu tenho uma dica para você.
- Dica?
Ninguém nunca me dá dica de nada.
- Como você se
sente diante disso?
- Confuso. Eu não
sei o que vai ser de mim daqui a quatro anos. Com o quê eu vou trabalhar. Não
tenho nenhuma indicação de como vai ser meu futuro.
-
Você lê muito. Por que não escreve?
- Um livro?
- Altivo, primeiramente a gente
escreve o que der na telha. Se um dia isso vai virar um livro, eu não sei.
- Pode ser num blog, né?
- Tá aí uma boa ideia. Pode sim.
Crie um blog e comece a escrever. Eu vou te ler e te ajudar.
- Valeu professor, pela dica. –
Estendeu a mão e me cumprimentou.
Durante o resto do ano letivo, conversei
mais algumas vezes com Altivo. O blog dele era relativamente lido. Suas
histórias eram boas dentro do gênero fantástico. Confesso que não gosto muito
de literatura fantástica, mas os textos dele eram bem estruturados.
- Terminado o ano letivo, voltei
para minha cidade. Consegui remoção.
- Algumas vezes acessei o blog do
Altivo. O garoto estava evoluindo. Eu fico feliz por ter dado aquele toque no
garoto. Era alguém de baixa autoestima. Agora parece que sua vida tinha uma
razão de ser, a literatura.
- Minha vida foi decaindo depois
que voltei para minha cidade. Tentava consertar meus erros cometendo outros. Um
deles foi ter engravidado Márcia Regina, o outro foi ter se casado com ela.
Márcia Regina não era o meu tipo
desde o primeiro encontro. Mas eu não tinha tipo preferido, apenas uma
necessidade masculina de cortejar uma fêmea da minha espécie. E quando não se
tem tipo preferido, qualquer tipo serve. Ela parecia ser aquela pessoa que
nasceu para ser infeliz. Nada estava bom para ela. Resmungava o dia todo. A
gravidez só fez piorar o seu tipo.
Eu fui aumentando o número das
minhas aulas para dar vida digna ao bebê. Ela se ralhava com tudo que eu
comprava. Se eu comprasse um brinquedo, a criança precisava de roupinhas. Se eu
dava a ela dinheiro para comprar algum agasalho para o bebê, ela dizia que eu
não prestava nem para ir a loja adquirir algo para o filho. Caso eu, com ajuda
de alguma amiga balconista de butique, comprasse um agasalho, ela então dizia
que criança gosta é de brinquedo.
Não sei o que me cansava mais. Se
eram os alunos desinteressados ou se era Márcia Regina. Um dia nublado de
março, aconteceu a separação. Nada era amigável por parte dela. Exigiu pensão
alimentícia em alto valor. Evitei polêmicas com ela e com sua família. Aceitei
o que foi proposto.
Doenças foram se acumulando e
metade do meu salário era para a pensão alimentícia e metade para os
medicamentos.
Mudei para a capital. Trabalhava
em três turnos. Um na rede estadual, outro na rede municipal e complementava
minha renda na rede particular.
Não havia tempo para procurar uma
parceira. Ocasionalmente eu tinha oportunidade de me satisfazer com algum tipo
de prazer. Era trabalho e mais trabalho.
A vida foi ficando enjoativa. Eu
fui me cansando de tudo. Cansando do trabalho, cansando das pessoas, cansado de
mim mesmo. Nada mais fazia sentido para mim. Resolvi encerrar minha jornada
nesse mundo. Era minha vitória sobre a vida chata que eu levava sem ter outra
opção. Peguei a caixa de remédios tarja preta que me mantinha lúcido, sentei-me
diante da televisão com meu coquetel mortal e um copo de água, Relembrei de
todos os erros que cometi, sobretudo o do casamento com a megera da Márcia
Regina, talvez o pior deles, a razão para eu estar nesse inferno. Meu filho,
nem sei como ele é hoje. Não consigo separá-lo da sua mãe em minha mente. Ele é
a prova cabal do meu erro. Não sinto amor por ele, essa é a verdade. São sete
anos de distância.
Liguei a tevê no volume bem alto,
talvez eu quisesse chamar atenção de alguém para meu ato de heroísmo. Por
coincidência, o canal estava exibindo um programa de literatura. A entrevista
do dia era com Tivo Medeiros, um novo escritor em ascensão.
- Quero agradecer um professor
que tive no primeiro ano do Ensino Médio. Eu estava pensando em suicídio e ele me
apontou os caminhos da literatura. Graças a ele estou vivo e quero celebrar com
ele, algum dia que eu o encontrar, esse sucesso que venho fazendo. – Disse
Altivo, meu ex-aluno.
Respirei fundo, olhei para o copo
d’água e os comprimidos. Voltei até a cozinha e guardei tudo. Adiei meu ato de
heroísmo e fui procurar Altivo para celebrar com ele um dos poucos acertos da
minha vida.
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