domingo, 12 de março de 2017

ERROS & ACERTOS

ERROS & ACERTOS

Os dias ficam pairando pelo tempo em um turbilhão dentro do meu pequeno quarto alugado no velho casarão. Lá fora uma placa diz que aqui é uma pensão.
Quando saio para lecionar em minhas aulas de língua portuguesa, fico imaginando a história de cada aluno. Cada um com sua careta e com seus sonhos. Cada um com seus silêncios e com seus barulhos. Cada um com seus vazios.
Um desses alunos me chamou bastante atenção. Era um sujeito um pouco obeso, sempre de cabeça baixa. Era o Altivo, da turma E do primeiro ano. Sempre mediano em suas notas.
Um dia acordei com vontade de conversar com algum aluno meu. Altivo sobressaiu em meu cérebro. Até parece que ele estava escondido entre os neurônios.
Acolhi a imagem de Altivo em minha mente como um pedido de socorro. Era preciso conversar com ele. Olhei meu horário. A aula na turma dele será no quinto período, o último.
Assim que terminou meu último período, chamei Altivo para conversar mais um pouco. Ele começou estranhando:
- Que foi professor? Eu não sou de bagunçar sua aula.
- Não é isso Altivo. Eu só quero te falar que te acho muito quieto, muito no seu canto. Eu gostaria que você fosse mais participativo.
- Como assim professor?
- Você gosta de literatura? Vejo sempre você com um livro na mão.
- Gosto. Acho que leio para me distrair.
- Como assim?
- Meu mundo é muito chato, professor. Meu pai é um alcoólatra. Minha mãe, coitada, não sabe o que fazer da vida. Passa o dia trabalhando de faxineira e a noite adormece em frente à novela. Minha irmã vive envolvida com rapaz que não presta. Só tranqueira.
- Puxa vida. Um drama e tanto. Isso parece ser ruim, no entanto eu tenho uma dica para você.
- Dica? Ninguém nunca me dá dica de nada.
- Como você se sente diante disso?
- Confuso. Eu não sei o que vai ser de mim daqui a quatro anos. Com o quê eu vou trabalhar. Não tenho nenhuma indicação de como vai ser meu futuro.
- Você lê muito. Por que não escreve?    
- Um livro?
- Altivo, primeiramente a gente escreve o que der na telha. Se um dia isso vai virar um livro, eu não sei.
- Pode ser num blog, né?
- Tá aí uma boa ideia. Pode sim. Crie um blog e comece a escrever. Eu vou te ler e te ajudar.
- Valeu professor, pela dica. – Estendeu a mão e me cumprimentou.
Durante o resto do ano letivo, conversei mais algumas vezes com Altivo. O blog dele era relativamente lido. Suas histórias eram boas dentro do gênero fantástico. Confesso que não gosto muito de literatura fantástica, mas os textos dele eram bem estruturados.
- Terminado o ano letivo, voltei para minha cidade. Consegui remoção.
- Algumas vezes acessei o blog do Altivo. O garoto estava evoluindo. Eu fico feliz por ter dado aquele toque no garoto. Era alguém de baixa autoestima. Agora parece que sua vida tinha uma razão de ser, a literatura.
- Minha vida foi decaindo depois que voltei para minha cidade. Tentava consertar meus erros cometendo outros. Um deles foi ter engravidado Márcia Regina, o outro foi ter se casado com ela.
Márcia Regina não era o meu tipo desde o primeiro encontro. Mas eu não tinha tipo preferido, apenas uma necessidade masculina de cortejar uma fêmea da minha espécie. E quando não se tem tipo preferido, qualquer tipo serve. Ela parecia ser aquela pessoa que nasceu para ser infeliz. Nada estava bom para ela. Resmungava o dia todo. A gravidez só fez piorar o seu tipo.
Eu fui aumentando o número das minhas aulas para dar vida digna ao bebê. Ela se ralhava com tudo que eu comprava. Se eu comprasse um brinquedo, a criança precisava de roupinhas. Se eu dava a ela dinheiro para comprar algum agasalho para o bebê, ela dizia que eu não prestava nem para ir a loja adquirir algo para o filho. Caso eu, com ajuda de alguma amiga balconista de butique, comprasse um agasalho, ela então dizia que criança gosta é de brinquedo.
Não sei o que me cansava mais. Se eram os alunos desinteressados ou se era Márcia Regina. Um dia nublado de março, aconteceu a separação. Nada era amigável por parte dela. Exigiu pensão alimentícia em alto valor. Evitei polêmicas com ela e com sua família. Aceitei o que foi proposto.
Doenças foram se acumulando e metade do meu salário era para a pensão alimentícia e metade para os medicamentos.
Mudei para a capital. Trabalhava em três turnos. Um na rede estadual, outro na rede municipal e complementava minha renda na rede particular.
Não havia tempo para procurar uma parceira. Ocasionalmente eu tinha oportunidade de me satisfazer com algum tipo de prazer. Era trabalho e mais trabalho.
A vida foi ficando enjoativa. Eu fui me cansando de tudo. Cansando do trabalho, cansando das pessoas, cansado de mim mesmo. Nada mais fazia sentido para mim. Resolvi encerrar minha jornada nesse mundo. Era minha vitória sobre a vida chata que eu levava sem ter outra opção. Peguei a caixa de remédios tarja preta que me mantinha lúcido, sentei-me diante da televisão com meu coquetel mortal e um copo de água, Relembrei de todos os erros que cometi, sobretudo o do casamento com a megera da Márcia Regina, talvez o pior deles, a razão para eu estar nesse inferno. Meu filho, nem sei como ele é hoje. Não consigo separá-lo da sua mãe em minha mente. Ele é a prova cabal do meu erro. Não sinto amor por ele, essa é a verdade. São sete anos de distância.
Liguei a tevê no volume bem alto, talvez eu quisesse chamar atenção de alguém para meu ato de heroísmo. Por coincidência, o canal estava exibindo um programa de literatura. A entrevista do dia era com Tivo Medeiros, um novo escritor em ascensão.
- Quero agradecer um professor que tive no primeiro ano do Ensino Médio. Eu estava pensando em suicídio e ele me apontou os caminhos da literatura. Graças a ele estou vivo e quero celebrar com ele, algum dia que eu o encontrar, esse sucesso que venho fazendo. – Disse Altivo, meu ex-aluno.
Respirei fundo, olhei para o copo d’água e os comprimidos. Voltei até a cozinha e guardei tudo. Adiei meu ato de heroísmo e fui procurar Altivo para celebrar com ele um dos poucos acertos da minha vida.



Nenhum comentário:

Postar um comentário