quinta-feira, 29 de abril de 2021

OS ESCRITOS DO ODIADO

 


Ele se isolava e era detestado. Na vila próxima de onde morava sentia-se um leproso andando pela rua, todos o evitavam. Precisava sair dali, mas algo o prendia naquele lugar horrível, entre as montanhas de um canto de Minas Gerais que parecia perdido no tempo.

Sargento era seu cachorro fiel. Dormia com ele, almoçavam a mesma comida, acompanhava-o nas caçadas e no trabalho no pequeno sítio de dois alqueires que herdou do pai. O casebre era mal faxinado. Sujeira e falta de higiene. O odiado, já lhe chamavam assim, passava três a quatro dias sem se banhar. Caprichava um pouco quando dava um pulo até a cidade. Havia um velho ônibus apenas duas vezes por semana. Recebia sua aposentadoria e comprava poucas coisas. O necessário. Sua casa sem energia elétrica, sua água de uma mina próxima da sua morada. Tudo simples, tudo rústico.

Duas caixas de madeira, daquelas antigas, onde guardava coisas. E serviam de assento também. Em uma delas as escassas peças do seu vestuário, na outra os cadernos.

Nesses cadernos ele escrevia suas histórias arrancadas da sua desacreditada imaginação. Histórias que ninguém lia e ninguém era capaz de imaginar que ele conseguia tal proeza. Tinha sido alfabetizado até o terceiro ano quando pegou raiva da escola onde os outros garotos gostavam de tirar sarro da sua cara emburrada.

Mas leu a Bíblia inteira três vezes. Lia tudo que lhe chegava às mãos. Escrevia muito bem apesar dos tropeços na gramática. Escrevia pela tarde.

fonte: da imagem: http://terrorcontos.blogspot.com/

Houve uma noite, um bando de garotos drogados e a péssima ideia de colocar fogo na casa dele. Ele dormia. Desmaiou sufocado pela fumaça e morreu carbonizado. Quase tudo foi queimado, exceto a caixa de madeira com os cadernos. O cachorro ficou, farejava tudo e parecia vigiar o pouco que sobrou. Dormia sobre a caixa.

Lucas, um garoto perspicaz, na manhã seguinte passava pela estrada, ouvindo os latidos do cachorro solitário, teve a curiosidade visitar os escombros do casebre. Pegou para si os cadernos do velho homem queimado covardemente. O cão parecia não se opor, mas o acompanhou até a sua casa.  Ele leu e entendeu que se tratava de histórias interessantes. Precisava trazer à tona o talento do homem mais odiado da vila. Com ajuda da Secretaria de Cultura, conseguiu publicar uma coletânea das histórias mais interessantes. Foi às escolas, deu entrevista na rádio comunitária, postou em suas redes sociais e atraiu um pequeno público para a noite de autógrafo.

No lançamento do livro, Os Escritos Do Odiado, enquanto o rapaz, responsável a dar luz àquelas histórias, falava do seu encanto da primeira vez que leu os manuscritos, Sargento, com seu corpo magricelo, entrou no recinto.

Lucas esbanjava orgulho e alguma timidez perante o público atencioso. Sargento foi se acomodando ao lado do jovem. Enquanto o nome do velho era lembrado, o corpo do cachorro foi ganhando massa muscular e mudando sua morfologia. Ninguém percebeu o inicio da transformação, foi um garoto desatento às palavras do rapaz que achou estranho o cão se transformando em um homem. Gritou, e então passaram a perceber. Lucas olhou de lado e viu a transformação acontecendo. Ficou atônito, boquiaberto. O animal tomou a forma do homem, autor das histórias contidas naquele livro. Boa parte dos presentes, apavorados, diante do corpo do maltrapilho já tido como morto, saiu correndo e se acotovelando na porta do salão. Os poucos que ficaram viram o homem pegar o microfone da mão do rapaz que, assim que se viu livre do objeto, caiu no chão, desmaiou. O homem odiado se apresentou e pediu para que ninguém se assustasse. Ele não havia morrido no incêndio. Esperava o momento certo para voltar a ser humano. Quem estava no corpo humano carbonizado naquela noite criminosa era o do seu único e fiel amigo, o cachorro, que trocou de alma com ele. Nem ele sabe como isso aconteceu.

Quando a polícia chegou juntamente com os socorristas, o homem tomava água calmante. Não havia porque prendê-lo. Viver como um cachorro não é crime.

Mas as mortes misteriosas dos cinco delinquentes que atearam fogo naquele casebre, que não tinham sido inocentados por serem filhos de famílias influentes, podiam até ser crime. Mas elas tinham cara de justiça.



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